quinta-feira, 22 de março de 2007

SOBRADO DE LÚCIFER

Com um líquido que seria letal para qualquer ser humano, somente com isso, a moça se alimentava. Nunca ninguém conseguiu entender qual o fenômeno ou anomalia genética que a tornava tão resistente àquela misteriosa poção, criada e produzida por ela mesma. Uma mistura de acetona com ervas compradas de duvidosos vendedores itinerantes do centro mais sujo da cidade. A fórmula exata, nunca se soube. Talvez nem a própria inventora.
O fato é que ela resolveu viver apenas em casa, saindo só para comprar as ervas, e sempre dopada por seu alimento, que tinha efeito psicológico pelo menos cento e oitenta vezes mais forte do que o absinto ou qualquer bebida que ainda viesse a existir.
Ela não fazia nada. Não comia nada. Não gastava dinheiro com nada. Nem mesmo com roupas, pois tinha um vestido longo vermelho de lantejoulas, que jamais era lavado. Traje de puta mesmo, comprado num brechó do mesmo centro mais sujo da cidade. Sua mãe, dona Andrósia, senhora tão distinta e amorosa, aceitava a filha. Diferente das duas irmãs, que tratavam a moça como um animal indesejável, um sapo idoso no canto do jardim, embora invejassem sua liberdade. Afinal, ela jamais se preocuparia com empregos ou namorados.
Nunca se soube o motivo da decisão de adotar este bizarro estilo de vida. Não, nenhuma desilusão amorosa. Nenhum trauma psicológico ou neurológico, nenhum acidente. Parece que ela simplesmente começou a achar tudo normal demais e passou a ser assim. O cabelo era um espetáculo à parte. Um verdadeiro zoológico freak , um pequeno umbral. Dreadlocks involuntários foram aparecendo, já que água, os fios não viam nunca. Pelo meio dos rolos, foram se formando ninhos de bichos jamais antes vistos pelo ser humano. Criaturas simplesmente indescritíveis. Além do mofo. A mãe dizia, com uma mistura de reverência e medo: -Acho que aí moram até demônios. É o Castelo de Lúcifer-. Mas a filha contestou: -Se o Demônio tivesse casa não seria um castelo, mas um sobrado antigo, com um belo jardim de árvores secas e fogo, situado na rua mais pecadora do mundo.- Foi daí que surgiu seu nome definitivo e oficialmente aceito pelos hitoriadores: Sobrado de Lúcifer. E Sobrado, como uma bêbada daquelas lúcidas, que falam a perturbadora verdade, certamente era um transtorno. A última vez que dona Andrósia havia recebido visitas, Sobrado apareceu na sala, de repente, estranhíssima figura, mandando os convidados embora. Disse que simplesmente não agüentava mais aquela gente lá, gente de energia negativa e mentalidade ínfima. Desta vez, a mãe falou: -Ai, filhinha, que vergonha! -Puta, mas que merda! Vergonha devia ter você, de trazer esse povo menor aqui, eles me deixaram com bodão. Não gostei. E a mãe recolheu a louça e foi triste para a cozinha, concordando com a filha. As visitas saíram se benzendo e correram tanto com o carro que bateram feio num poste. Houve ferimentos, mas continuaram correndo mesmo assim, a pé. Um desespero. Só queriam sair de perto daquela casa. –Cruzes-, diziam sem parar. E parece que até hoje o casal só consegue repetir esta palavra: Cruzes.
Sobrado, que apesar de sincera tinha bom coração, ficou com pena da mãe. Não pelo que tinha feito, mas por aquela senhora tão generosa e boa sentir-se na obrigação de receber lixo humano em casa. -E nem elogiaram a comida dela-, pensou. Nunca se soube também como a fama de Sobrado começou a se espalhar pelo mundo. Houve boatos que um admirador secreto conseguiu espioná-la, tirando fotos, apurando informações e montou um site na internet. E assim, o impossível aconteceu. Surgiram dois pretendentes.
Um deles, Wolf era um alemão famoso no underground mundial por ter ficado dependurado pela pele, por vários ganchos, durante meses em Berlim, num lugar obscuro, mistura de bar, templo e clube sadomasoquista. Sua pele parecia uma lona de circo velha e flácida, seqüela do estranho emprego que tinha na Alemanha. Ele trabalhava nisso para se aproximar das esferas mais profundas, obscuras, sangüíneas do mundo visível e invisível. Para ele, Sobrado seria a mulher perfeita, aquela que trazia o umbral na cabeleira. O outro foi Fausto, um assassino que havia se especializado em construir ikebanas com órgãos e pedaços de corpos humanos. A polícia internacional sempre ficava impressionada com a delicadeza e o bom-gosto de seus arranjos, como também pela habilidade dele em não ser pego. Um artista especializou-se em fotografar estas obras, organizando exposições tidas pelos críticos mais implacáveis dos jornais do mundo todo como arte de altíssima qualidade. Isso transformou Fausto em dono de imensa fortuna. Wolf e Fausto chegaram à casa da moça coincidentemente juntos, para horror do bairro inteiro. Foi nesse momento que uma das irmãs morreu do coração, com apenas vinte e sete anos de idade. Como sempre, a única a aceitar foi dona Andrósia, comovida pela paixão dos dois rapazes. -Afinal, parecem pessoas respeitáveis, não duvido que sejam bons moços, gente de bem- disse ela para Sobrado, que começava a gostar da idéia da união. Sobrado casou-se com os dois, numa cerimônia simples no jardim da casa, decorada com rosas vermelhas, douradas e negras. Por uma infeliz coincidência, a outra irmã embarcava na ambulância do hospício neste mesmo momento. Foi uma pena que não pudesse compartilhar da alegria dos noivos e da noiva, que ainda comentou:
- Coitada, não comeu nenhum docinho... - Ficaram os quatro morando na casa.
Fausto fez lindíssimos trabalhos com os corpos de todos os inimigos da mãe de Sobrado.
-Nunca matei alguém que prestasse- dizia.
Ganhou mais dinheiro ainda. E Wolf parou de fazer seus shows para produzir bolos decorativos sob encomenda, já que com a noiva estava próximo das profundezas do ser, vivendo com a mulher mais selvagem que já existiu. Seus bolos ficaram famosos, cheios de flores, frufrus, anjinhos esculpidos em açúcar, flores de biscuit e toda sorte de adereços românticos. Afinal, clima de romance e conforto era o que não faltava naquele lar onde, de verdade, existia o amor.


por Greta Benitez

FILHINHO DE PEIXES

Vendo assim não tem quem diga.Menino como ele, calmo como ele, educado como ele fazer o que fez. Cadê sua sensibilidade à flor? Onde socou? Ele que sempre foi a própria flor.
Delicado e cheio de amor. Típico pisciano, romântico. Nunca fez maldade à mosca. Nunca assassinou uma formiga. Pobrezinho do passarinho, coitadinha da lagartixa.Nunca atirou a primeira pedra. Ou a última. Nunca se envolveu em briga, baixaria do tipo: assim, agora, eu não lembraria.

A pessoa mais amiga e mais compreensiva. Que Deus pôs na terra.Dos frutos bons que Deus pôs na terra, acredito. Lembro como se fosse agora, como se fosse hoje o seu nascimento. Dia 20 de
março, há 19 anos. A família reunida e o médico dizendo: é um menino bonito e grande. Cheio de saúde para todo o sempre. Para todo o sempre.Do signo de Peixes. Porra, nunca lembrávamos o ascendente. Alguém sabe o seu ascendente? O problema talvez tenha sido o seu ascendente. Por que não pensei nisso antes?O ascendente.Há quem diga que Peixes é o "Sanatório do Zodíaco". Vai ver que é isso. Que outra explicação há para o acontecido? Nesta madrugada, cena tão horripilante. Não eram dele aqueles olhos, não eram. Tem certeza que foi ele mesmo? Não houve engano? A polícia é sempre do contra, não respeita quem vive no mundo da lua. A polícia sempre acusa a primeira alma fraca que encontra, é isso. Não tem sentido.Logo ele que sempre estudou na melhor escola. No melhor de tudo. No melhor do melhor. Condições sempre teve de viajar pelo Brasil e pelo mundo. Fala fluentemente, fluentemente.

Tudo que é língua. How are you, mother? I love my mother.

Mammy.

Menino cheio de ternura, um capetinha azul. A coisa mais linda correndo pela casa, bagunçando os móveis, pedalando as plantas. Que maravilhoso futuro o aguardava. Nada parecido com esse futuro, agora. Que horas são essas? Que horas? Minha cabeça anda tonta. Tudo é um sonho, um sonho. Um pesadelo de mau gosto. Ele nunca foi um menino assim, bruto. Assim, desumano. Deselegante. Desamável, inculto. Muito pelo contrário: ouvia Beethoven, tocava piano. Nunca gostou de rock. Nunca pôs um cigarro na boca, bebida, droga de maconha. Sempre pedia à mesa suco de morango. E um canudo. Consumia um litro de água por dia. Cuidava da saúde. Sempre dizia: “O corpo é a casa do espírito. E a casa sempre precisa estar arrumada e limpa e protegida”. Bem protegida.Amigo e companheiro como ele não havia. Gostava também de poesia. Vivia recitando coisas pelo jardim. No computador ainda pisca um verso assim: “Eu nasci assim capim”. E eu achava aquele verso engraçado. Enfim. Dizia também que o Brasil era um país sem cultura. Sem cultura. Ele ajudava a cultura. Não entendia tanta gente no olho da rua. Ajudava a filantropia. Quantas vezes saiu para dar aula no subúrbio? Adorava os pobres. Pelos pobres era capaz de fazer tudo.
Tudo.Não quero pensar nisso. Os pobres estragaram o menino, quem sabe? Alguém pôs um mau caminho no seu caminho.
Não, não acredito. É impossível. Fazer o que ele fez, deve ter sido a conjugação dos planetas, o movimento da maré. Alguma nuvem mal que se aproximou do seu signo. A lua crescente, minguante. A força dos planetas, algum desastre no céu de março. Mercúrio e Plutão em quadratura. Não sei onde li isso. De repente, a gente vai lembrando de coisa muito maluca. O ascendente dele é Câncer.Lembrei: é Câncer.Ouço a chegada da viatura. Outros tiros pela casa. Outros tiros pela casa.O estardalhaço que a imprensa vai fazer do caso. O povo à rua querendoqueimá-lo vivo.Saiam já da minha porta. Da minha porta. Não deixarei que façam isso. É tudo mentira. Não existe sangue. Não estou morrendo, o mundo não está morrendo, ninguém está morrendo. Estamos todos bem. Amém.Venha e abrace sua mãe, hã, hein? Fique calmo, fique tranqüilo. Este inferno é só um inferno astral.
Meu filho.

por Marcelino Freire

UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de espelhos, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Nie) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado do bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:
por Luci Collin

A NINFA ECO

Eu era ninfa infa do séquito quito da deusa eusa Juno uno. E apreciava ava contar tar a ela ela longas ongas histórias órias. Mas um dia ia, irada ada com as infidelidades ades de Júpiter úpiter, a deusa eusa, não tendo endo a quem culpar ar, julgou ou que eu eu o protegia ia, divertindo indo indo a ela ela, que se descuidava ava, enquanto anto o deus eus do Olimpo impo a traía ía. Pensou ou que ele ele mantinha inha um conluio uio comigo igo. Malvada ada, sequer er procurou curou averiguar ar se era real al o que em juízo ízo ela imaginava ava. Acabou ou com minha inha alegria ia e castigou-me ou-me com uma maldição ão. Condenou-me ou-me a falar ar apenas enas quando ando me interrogassem assem e ainda inda assim sim respondendo endo só com as últimas timas sílabas labas a mim dirigidas idas. Matou-me ou-me o gosto pelos elos bosques osques cerrados ados, onde onde vaguei ei durante ante anos anos, infeliz iz, ouvindo indo apenas enas a doce oce voz oz das melíades líades que embalavam avam crianças anças abandonadas nadas furtivamente ente nos ramos amos das árvores vores. Uma tarde arde a felicidade ade renasceu eu em mim im, quando ando vi o belo elo Narciso iso passeando ando pelo elo desfiladeiro eiro, descabelando ando a copa opa dos carvalhos alhos, que se moviam iam para ara vê-lo ê-lo caminhar nhar displicente ente. Apaixonei-me ei-me por seus eus cabelos elos de sol ol encaracolados lados e seu eu semblante ante de perfeição ão inigualável ável. Segui-o i-o por muitas uitas manhãs nhãs, ferida ida de amor or, mas sem a ele ele me declarar ar. Num um bosque osque nas as adjacências ências de Téspias pias, ele ele costumava ava se mirar ar por horas oras às margens gens de uma fonte onte onte. Aproximei-me ei-me para ara me me declarar clarar, mas eu eu nada ada podia ia dizer er senão ão o que ele ele me dizia ia. Recordei ei minha inha desgraça aça; eu jamais mais poderia ia confessar ar meu amor or, porque que as minhas inhas palavras avras seriam iam sempre empre as que ele ele enunciasse asse. Ao me flagrar ar contemplando-o ando-o, virou-se ou-se furioso oso me perguntando ando quem em eu eu era era. E eu lhe respondi ondi quem em eu eu era era. Rindo indo, o que o tornava ava mais belo elo, os cachos achos da cabeleira eira fulva ulva luzindo indo, Narciso iso zombou ou com desdém ém que me queimou mou a alma alma. Nada ada me consolaria ia senão não me refugiar iar no nevoeiro eiro das trevas evas, nos antros tros, nos rochedos edos, nas pedras edras das cavernas ernas e cumprir ir meu fado ado amargo argo, minha miserável ável sina ina de repetir ir. Justo usto eu eu que adorava ava contar tar histórias órias pelo elo puro uro prazer de ser er ouvida ida.

por João Anzanello Carrascoza

O HOMEM DA CICATRIZ

De dia, escrever, tomar cafezinhos, ler jornais no McDonald's. De noite, beber Jack Daniel's, comer chocolates ou cus, ler um livro sobre o surrealismo francês e pensar como ficaria seu corpo lá embaixo estatelado no asfalto, chapado de maconha. De dia, no PC, escrever mensagens, mandar cerca de trinta e-mails das 9 às 6, contando coisas pessoais, extremamente pessoais, ouvindo isso de outras pessoas, tratando de assuntos pseudamente profissionais, pedindo coisas, favores, retribuindo, oferecendo favores e gentilezas, quase sempre muito gentil, mesmo, e tudo enquanto trabalha, ou seja, o que é trabalhar? Quase não fazer nada, conversa fiada transubstanciada em memorandos, anotações, idéias, resenhas sobre fatos alheios e reuniões em que se finge um interesse inviável pelo que diz o chefe, passeando pelos corredores vazios da firma assuntos como futebol ou guerra, elogiando ou metendo o pau, dissimulando intrigas e mexericos, comentando as bundas das mulheres, e, se der sorte, numa hora de almoço perdida no tempo, foder aquela assistente gostosinha [desesperado estupro da noite no dia]; de noite, ou muito devagar ou muito muito rápido, no Mac, tentar escrever, num simulacro de diário, sua vida reinventada, criando mentiras aos amigos, rindo falso no telefone, comendo coisas estranhas e quase sempre mulheres estranhas, estranhas que de repente ficam bem naturais, essas mulheres de mil anáguas e calcinhas e aí nuas nuas nuas de dizer até mesmo eu te amo. O dia rasurado por signos conhecidos, a rotina equacionada pra não dar errado nunca. Nunca o sinal se abrir lento demais, nunca o carro da frente demorar, nunca chover pra caralho ou fazer sol além do bastante, nunca falar com o mendigo no semáforo, nunca cometer imprudências ou desperdiçar bons-dias, esconder-se, profundamente de si esconder-se, no cansaço do sono, na pedra do sonho, lavrando a certeza de que amanhã sim, amanhã talvez. E todo dia, entre madrugada e manhã, a cicatriz cada vez mais aberta e funda, entre crepúsculo e lua formulários agonizam, secretárias se ocultam nas casas dos maridos, assistentes viram um porre, vais pra puta que pariu que morreram amargos no âmago da garganta, e então a sede, a sede da noite, porém junto um arrependimento, de sensação de lixo, suor grosso expulso dos poros, expulso do dia, e então exilado, insulado. [Mas mais preciso. Pois a cada despertar, outro delírio abortado.] Um dia, ligar o foda-se. Um dia, a noite plena. O sol que se dane. A cicatriz, o próprio sol.

Vila Madalena [SP], outono, 1999

por Ronaldo Bressane

É O CARALHO

Era de noite, chovia, dentro do ônibus, olhando pra fora, em Copacabana. Tinha visto um filme do Buñuel e nem sabia que era do Buñuel, nem sabia que havia o Buñuel. Gostou das duas atrizes que faziam o personagem feminino principal. Estava apaixonado por elas.
Em casa, explicou quem era o Buñuel.
Não se importou que tivesse matado aula para ver o filme do Buñuel.
Era pra ver qualquer filme, não o do Buñuel especificamente. Deu sorte com o diretor e eram muito lindas mesmo, muito charmosas mesmo, que fazem ficar apaixonado. Podiam ensinar tudo e dar muito carinho e ser mães e ser namoradas amantes professoras.
Iam começar as férias, amanhã. Ia voltar para a cidade pequena, onde sonhava voltar um dia fazendo parte do elenco de uma novela igual Dancing Days. Tinha uma que gostava e gostava de teatro e ainda queriam ser atores e escrever teatro e participar das novelas.
Queria viver as histórias de amor das novelas, com a Lídia Brondi e não chorava. Se fosse adulto, choraria.
Teve alguns amigos que participaram de novelas iguais Dancing Days.
Hoje, e foram protagonistas e beijaram, na boca, mulheres que posaram nuas para a Playboy.
Fizeram sexo com mulheres que saíram nuas na Playboy. Fizeram sexo até com mulheres que a Playboy ofereceu uma fortuna para saírem nuas na Playboy, mas não precisam e recusaram.
Até trabalhou na Globo muito depois daquele dia de chuva e apareceu em alguns programas de televisão. Saiu na revista.
Falaram mal, apontaram defeitos.
Elogiaram muito e foi ficando muito importante. Talvez o melhor seria ter parado.
Foi ficando figurinha fácil.
Sentiu o envelhecimento.
Tem quase 40 anos.
Pensou se poderiam, ou deviam, tomar conta, não deixassem que nada de ruim pudesse acontecer.
Acontecem coisas ruins. Aconteceu.
Não levaram isso em conta e deram umas porradinhas. Não eram amigos, não conhecem, têm que trabalhar, na sexta-feira, de noite, vão para um bar que tem jornalistas e tem artistas. Não pode beber. Bebem e não pensam que tem sofrimento. Sofrendo.
Um dia, pareceu que tinha morrido.
Era muito sensível. No colégio, sentia muito essa sensibilidade.
Não apareceu na Globo. Todo mundo ia ver e iam lembrar lá naquela cidade. Gostaria.
Saiu na Veja. Aí todo mundo reparou.
Gostava de ver o Glauber Rocha fazendo discurso lá no Posto 9.
Sente saudade.
Naquela época daquele dia, de noite, que chovia, olhando pela janela do ônibus: não era amigo de ninguém, no colégio, no Rio de Janeiro.
Demorou uns 2 anos pra ser chamado pras festas e ficar apaixonado pelas meninas que nunca ia namorar. Andava muito com o pai.
Fazia teatro e ninguém conhecia o Glauber Rocha. Domingo, depois do Fla X Flu, teve o programa com o Glauber Rocha. Ficou entusiasmado.
Ficou parecido com o Glauber Rocha. Tentava.
Abriu um buraco no joelho e foi parar num hospital e não precisou costurar.
De noite, indo para a cidade pequena. Morou na cidade pequena. Tinha o bar, de noite, com o primo. Tocavam jazz. Queria tocar bateria. Tocava bongô em cima do disco do Milton Nascimento - Minas, Geraes.
Depois, não gostava mais do Milton Nascimento.
Fica emocionado quando houve música do Lulu Santos, do Cazuza. Até da Blitz.
Achava que o rock nacional tinha roubado o espaço do Arrigo, do Itamar Assunção. Foi no Circo Voador, no Rio de Janeiro, no Arpoador, falava mal. Viajou com o Circo Voador. Suado, de noite, olhando pela janela do ônibus, faziam teatro dentro do ônibus, tocavam suas músicas, as músicas, daquela noite, do joelho machucado, mancando, com o primo e hoje acha que o Cazuza era um cara legal. O Cazuza foi na viagem do Circo Voador, Nordeste, não foi de ônibus, foi de avião, mandaram sair do time. O Evandro Mesquita entrou no lugar. Não gostava da Blitz. Gostava de ir a São Paulo, na Treze de Maio, no Carbono 14. Tinha grandes amigos, daquela cidade pequena, em São Paulo.
Ficou esquizofrênico, nunca aparece, teve dois filhos, casou de novo, nunca telefona, não deve ser tão amigo. Ficou bem em Genebra, toca guitarra, já deve ter cabelos brancos, fumava uns baseados, não vê há 3 anos. Tem saudade. Acho que era viado. Não era viado, mas comia viado, de noite, naquela cidade pequena, ficavam olhando pra lua, tinha o cachorro, era meio putinha, mordia os mamilos, tinha 12 anos, falava que tinha 15.
Hoje, não faz diferença. Eram amigos. Era do Rio Grande do Norte. Lembrava quando estava no Rio Grande do Norte. (Forma, o caralho.) Nunca mais viu.
Está com dificuldade com os olhos. Assistiu o filme com a história do Marcelo Rubens Paiva, tinha a Malu Mader. Foi bem pior. Tem medo de ir descobrindo aos poucos. Ficou emocionado quando reencontrou o Chacal. O pai gostava do Chacal. Gostava do Chacal, no colégio, no grupo de teatro, lia os poemas do Chacal: Papo de Índio e um do sapato na festa que pedia para parar de dançar. Foi em São Luis do Maranhão. Conheceu o Chacal, conversava, chamou para tocar. Tomou um ácido. Tomava qualquer coisa.
Será que pode tomar um ácido?
Foi bom, começou a fumar maconha. Fumava com a atriz, namorada. Era uma mãe, uma irmã. A viu no aeroporto. Estava trabalhando na Globo. Era o primeiro dia. Ano do Dragão. Falavam muito bem nas revistas. Acabou o tempo ruim. Não conhecia ninguém nas filas do cinema, em São Paulo. O telefone não tocou nem uma vez. No Rio, depois, começou a conhecer todo mundo: o Chacal.
Tinha o Asdrúbal, antes tinha surf, antes da cidade pequena, os primos, a Regina Casé, Camaleoa, Camaleão do Chacal, encontrou quando estava saindo da Globo, não teve problema, depois, naquele bar, em Brasília, estava bem, morando no hotel, de noite, depois tinha trabalhado com a Regina Casé, na Globo, de noite, voltando pra casa e sente uma saudade, não era que era feliz, acabaram os anos do Dragão.
Receitou anti-depressivo, pensava se um dia ficaria deprimido, era pra cima, ficou deprimido quando veio para São Paulo, tem saudade porque depois tudo foi ficando bom. Não via. Não eram depressões fortes. Podia ficar muito mais deprimido. Um vencedor.
Queria transar, namorar, ficou com medo. Podia. Gostam dos diferentes. A amiga foi em casa, queria. Tinha medo.
Ficou tão bêbado com a camisa do Lula. Saiu do Maracanã com a camisa do Lula. Ganhou a camisa do Félix.
Não davam bola. As mães não queriam que namorassem. Sabia. Gostou dela.
Tocaram juntos. Brigavam muito, meio inimigos. Depois, bem amigos. Foram abandonados pelas namoradas. Aquele sentimento. Tocavam nos bares. Deu bola, gostou. Trocaria a outra por essa. Foram para São Paulo, até tocou com o Hermeto Paschoal. Gostou dele, gostava de homens femininos. Acha que era gente fina. De noite, segunda-feira não tocavam, viam vídeos, não devia ter passado, passou os Blues Brothers, teriam mudado tudo se fizesse sexo, apaixonado, foi adolescente, dava pra qualquer um que pagasse um jantar, levou pra Nova York, disse que os europeus são bonitos naquela performance. Era pra ela. Era pra sacanear.
Foi muito bom. Se acabasse. Teria sido uma boa vida. Ia virar mito. Ia virar mito? Acha o Torquato Neto auto-artista. Tem um problema com suicidas. A mesma sensação daquela música com letra do Torquato Neto, das três da madrugada. Nada. Sentia arrepios. Está vivo, como o Pelé gritou. Chorou.
Canta a música com letra do Torquato Neto, aquela sensação, quando voltou, uma noite qualquer, táxi, Túnel Rebouças, descobrindo tudo, não foi no show da Gal, foi no show do Beto Guedes, falava mal do Beto Guedes. Era simpático, falava baixinho, sente quando ouve o Beto Guedes, por causa daquelas noites, mesmo se não chovia, mas uma coisa com a noite, a chuva, o Rio de Janeiro, o Macalé, o Guima. Sente uma emoção. Ouviu o Itamar Assunção, ficou muito emocionado, viu mais novo, gostava muito do Itamar Assunção, descobriu o disco do Itamar Assunção na saída do Teatro Ipanema. Foi outro dia, quase chorando, emocionado mesmo, gosta dele, sentia isso, estava bêbado, queria falar pro Arrigo, mudou sua vida, parece com o Arrigo, engordou, estavam meio pra baixo, sem dinheiro, sabia que isso ia acontecer, com eles, não com ele. Não esperava. Tudo muito diferente. Observador, dependeu dos outros, vai sozinho ao outro lado da rua, agora.
Leu na internet, uma banda igual a do Arrigo. Seria o Arrigo. Uma banda igual a dos Beatles. Era muito mais criança ainda. Sentado na motocicleta, na garupa, abraçada, sentia as coxas, filava o jantar quando tinha batata palha, muito antes, chamaram para jogar bombinhas no corredor, lia Dico, o Artilheiro, usava uma roupa preta toda colada no corpo, as coxas, dormia com ela, era apaixonado, ficava apaixonado toda hora, a filha mais nova dos Robinson, era muito criança, sonhou com um filho.
Sabia que ia ser assim, se acontecer de novo, não vai perceber, está sempre acontecendo. Estavam esperando, não está mais começando, não vai virar mito. Não dá pra inventar toda hora. O que deve ser ser dos Beatles? O George Harrison, pensa no Itamar Assunção, lembra da Alzira, naquela noite, tão relaxado com as mulheres, nadou nu no mar. Perguntou quem era. Foram à praia, à cachoeira, deu um passe de calcanhar, jogou muito bem, brigou com o amigo, falou no telefone, outro dia, uma saudade, do amigo, fazendo coisas muito bacanas, conseguiu ficar músico, andando pela calçada, em Copacabana. Ficou lá deitado na banheira de hidromassagem, podia continuar pra sempre, eterno, tudo, inventando de novo.
Literatura, o caralho.

por André Sant'Anna

AO MUNDO DAS MÁSCARAS

Ficar muda, enterrada sob lençóis. Múmia seca no sarcófago como lagarta encapsulada no casulo. Queria não descerrassem as cortinas, ainda não! Não abrissem. Olhos com remela sob pálpebras isolados do mundo solar. Que o jato de luz não jorre, janela, não abra a tumba. Dentro, musgo nas pálpebras, larvas entre dedos, mastigando unhas, pêlos, ossos. Fique, fique, fique, murmuram, enlouquecidas, agarrando pés, mãos. A luta, acordar, a luta, espada do cavaleiro solitário, liames decepados entrelaçados a troncos crescidos em desespero na selva, bromélias, bananeiras, figueiras travando o espetáculo luminoso. Lá fora, escapamentos, buzinas, apitos, engates, blasfêmias. Cavaleiro sem cavalo guerreia contra cipós selvagens, barbas de bode. A espada abre caminho, porta mágica: o despertador zune.
Deslizou o sabonete no corpo. Bom sentir o corpo. Avó Michiko não sentia mais. Ameixa chupada entre pétalas de crisântemos e sempre-vivas, máscara no jardim. Tão rápido. De manhã: sabe que está muito mal? Vôo para São Paulo, à noite, último desejo: Posso cantar? Claro. Primeiros acordes duma canção japonesa, dois suspiros, depois morreu. Lembrava a máscara, camélia desmaiada.
A água escorreu pelo corpo, sensação de vida. Mistério, morrer. Não tinha tempo pra filosofia, marcou encontro com uma amiga que vinha de Belo Horizonte. Devia ter cancelado, enfim um dia como outro. A vida continua.
Amigas há tempos, moraram juntas. Grete casou, mudou pra Minas. Durante anos mantiveram contato por telefone, carta. O fim das afinidades e a falta de convivência regular fez o relacionamento murchar até reduzir-se a um cartão no fim do ano. Surpresa quando ligou dizendo que vinha passar uns dias em Curitiba, queria encontrá-la.
Pensou em levar uma lembrança. Ela gostava de coisas de brechó. Passaria na loja do China. Sempre passava ali a caminho do trabalho. O chinês era um velho imigrado de Hong Kong nos anos 60. No brechó tinha tudo: gramofone, relógio de corrente, jaquetas e medalhas, bonecas de biscuit, louça em miniatura, castiçais de prata. Tudo cheirando naftalina.
Gostou da boneca de biscuit. Ponta do nariz lascada, mas o cabelo de seda natural e o vestido de organza em ordem. Conversou com China, que, como de hábito, queria empurrar mais trastes. Ao sair, sentiu um botoque na cabeça. Ai! A carranca despencou do teto. Não quebrou nada, né?, perguntou o chinês, referindo-se à carranca. Ajudou-a a levantar-se sorrindo. Olhou a carranca de expressão furiosa. A bocarra com dentes cerrados. Espanta maus espíritos, explicou o chinês.
A confusão a fez atrasar. Grete esperava, ansiosa, robusta e alegre.Abraçaram-se, beijaram-se, falaram. Conversaram sobre as novidades, mas havia um entrave. Olhar de soslaio, pernas descruzando impacientes, mãos gesticulando. O que a trazia de volta? Contou que mãe não estava bem de saúde. Não sabe porquê, não comentou a morte da avó.
Na despedida, o presente. Esqueceu no banco de trás do carro. Grete asurpreendeu com um pacote. Abra, vai gostar. Reconheceu o papel depresente: a carranca. Confusa um minuto, olhou a amiga, riu. Sabia que ia gostar. Despediram-se.
Ao voltar para o carro jogou no banco de passageiro a máscara feia. Por que ela me deu isto ?, pensou, irritada. No banco de trás a boneca sorria, sem graça.

por Marília Kubota

UMA BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA

UMA BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Primeira versão

O jato insiste em correr pela vidraça, livrando-a de todo tipo de sujeira contida na manhã nascente: fiapos, asas de coleópteros, o pó falido da noite vencida pelo sol contrito.
A parte externa já rebrilha graças à ação da água cristalina. Por algum tempo, à janela é devolvida a condição de visibilidade ampla, assim como às árvores, por ela vistas, as de borrões pintados, e às colinas distantes, por ela devassáveis, de objetos moldados.
As nuvens voltam a ter um aspecto gráfico, ao menos até que o conflito entre o puro e o impuro, outra vez protelado para o dia seguinte, volte a fazer sentido.


UMA BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Segunda versão
a Mark Tansey


Trata-se de um retângulo de concreto armado, estrategicamente posto à frente de algo. É preciso haver um motivo para derrubá-lo e esse motivo não tardará a aparecer para alguém. É claro que, sem um domínio completo da situação, esse alguém encostará a cabeça em sua tessitura pardacenta, passando, então, a fazer força.
Das duas uma: ou a pressão psicológica reduzirá a cabeça a um amontoado de pedaços - sem trazer luz alguma ao ritual - ou, obscurecido pelo descaso e pela impossibilidade a priori da tentativa -, o sujeito sairá de cena, levando consigo sua crença numa presença ou em 'algum lugar lá fora' tridimensional.
De qualquer modo, o retângulo de concreto armado ficará ali, estrategicamente posto à frente de algo, desafiando quem estiver disposto a pagar por ele.


UMA BREVE HISTÓRIA DA PINTURA MODERNA
Terceira versão
a Mark Tansey


Sob hipótese alguma, o animal poderá ser responsabilizado. A galinha é também um ser que observa. Principalmente quando pressente que algo demanda que assim o faça. Reconstituamos a cena: uma pequena rampa, e, ao fundo, alteado por uma caixa de madeira, um espelho oblongo. Pelo caminho, espalhados - apenas para garantir que a experiência seja bem-sucedida - alguns grãos de milho servirão de engodo. Bicando-os ou não, ela subirá a rampa, pois, ali, na posição em que se encontra, descer é um ato impossível.
Cedo esbarrará com o seu próprio reflexo. Após segundos de embaraço, paralisar-se-á, atiçando a imaginação. Mas, então, 'pensará' o que? Que se trata, talvez, de um pôster afixado, pelos granjeiros, em sua homenagem? Transportar-se-á, no caso, para algum lugar fora do espaço-tempo, de certo modo, 'raciocinando' sobre as intenções da experiência? Ou, o que é provável, tudo aquilo lhe parecerá estúpido demais, de modo que, adiante, descendo a rampa, sumirá num matagal - que tampouco possuirá mistérios - apenas por não ter opção?


por Jorge Lúcio de Campos

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS

Capítulo I

Engoli um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um eletrodo em minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos estavam galopando. Menos o cavalo-marinho que nadava no aquário. Ele tem um problema mental. Será que tem alguma seqüela? No fundo deste meu mundo, lá no quarto escurecido por doses de Litrisan, veio um psiquiatra e baionetou uma química na minha celha esquerda. Enquanto outro puxava a minha banha, esticando e esticando para que não sentisse a injeção de Bezetacil.
Bezeta.
Bezeta.
Uma dor na bunda imensa. Tudo girando ao meu redor e eu girando também. Tiro uma meleca e coloco na mesa do canto, bem longe da escuridão no quarto. A escuridão é acética. Só o pessoal de branco pode freqüentar aquela linha impura. Seguram-me de novo. Recebo o beijo de minha mãe. Deve ser dia de visita. Acordo e como uma lasca de goiabada com o sanduíche de atum que mamãe trouxe para mim. Escuto uma música tão alta que não entro nos meus pensamentos e estou fora, agora a cocaína não vai chegar. A conexão foi interrompida.
Mal mamãe chega, mal mamãe vai.
- Ele continua achando que engoliu um chip.
Ela diz que tudo começou há uns dez anos quando eu achei que havia engolido um grilo.
- Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Minha mãe disse isso afagando meus lábios e me dando um beijo na bochecha. Por alguns segundos me lembrei de algo que havia acontecido no dia anterior. Eu havia quebrado toda a casa com uma fúria gigantesca. Nunca mais tomo Haldol na minha vida.
Foi por você não ter tomado o Haldol que você ficou assim, diz o chip. E eu começo a falar: "Só no Anhambi é tupi. Só no Anhambi é tupi."
O engolidor de espadas engole uma nesga de fogo por vez. Tá todo mundo engolindo alguma coisa neste exato momento. É hora do jantar. Mamãe se foi. A música volta a me colocar fora de mim.
Entro no quarto. Tiro o pau pra fora e começo a bater uma punheta. Dança da motinha. Dança da motinha. Eu engoli um grilo quando tinha meus 15 anos de idade. Foi a primeira vez que devia conviver comigo mais intensamente. Salvei uma casa do cupim maldito que queria destruir. Eram cupins gigantes. Tenho certeza de que salvei aquela casa. Tenho certeza de que por alguns segundos fui Jesus Cristo.
Ainda continuo na jaula. A minha boca está fechada com uma bocarra. Meus pés estão presos.
A música sai de mim e volta, não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo. Tudo começou com um grilo. Havia um grilo naquele primeiro dia. Havia um gene também. Da mesma forma não, mas de uma outra forma. Estou engolindo tudo, o tempo todo. No canto escuro do quarto, que é onde só vão os ratos. Sou podre. Porco. Imundo. Sou selvagem.
"Quantos grilos você fez eu engolir, filho."
Olho o jornal e não consigo ler nada. As doses devem estar altas. Porque eu não fiz nem quarenta anos e não consigo ler de perto. Arregaço as mangas da camisa e vou jogar sinuca com o Ruy Chapéu do lugar, que é um gari da Comlurb internado por utilizar em demasiado a bebida até em horas de trabalho. Antes, uma crente para a gente faz uma roda e manda que alguém reze. Ninguém ali sabe rezar porra nenhuma. São todas almas sem paraíso à vista. Eu começo: "Pai nosso que estais no céu..." Pelo menos eu sei rezar. A crente disse aleluia. Ela segurou a minha mão. Eu tirei o pau pra fora e num pude jogar sinuca. Voltei para o cubículo três por quatro onde me colocaram para sorrir com baionetadas nas veias. Segura a banha e estica a banha, e toma mais injeção.
Tudo começou quando engoli um grilo em São João da Barra. Eu tinha 15 anos de idade. Estava indo ou voltando. Sempre estava indo ou voltando. Só parava pra voar. Assim eram meus 15 anos, e foi como tudo começou. Nenhuma mulher saiu de mim nunca. Fui eu sempre que entrei em minha mãe. E lá estava ela bela e bonita, transando com papai. E eu vi, e era apenas mil novecentos e setenta. Não foi um trauma. Eu costumava andar com um cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro não era gay por ser azul. Só era azul. Também não tinha as noções de feminino e masculino naquela idade, ou tinha. Na verdade eu já me masturbava, e papai com muito jeito pedia para que eu tirasse a mão do meu pinto. Lembro-me de uma psiquiatra nos meus verdes 15 anos que me dizia que eu era homem porque me masturbava, não tinha porque ter crise de identidade. Eu não tinha crise de identidade porque eu vivia correndo atrás daquela mulher no horário da sessão. Ela chegou a me ameaçar, dizendo para o meu pai que se eu continuasse a querer agarrá-la eu teria que sair da análise. Ela falou que não agüentava dar conta de mim e reclamou porque eu não fazia um desenho, não brincava com uma massinha. Eu imitava um golfinho deitado no divã. Meu pau ficava duro e eu friccionava o tempo todo enquanto o golfinho nadava dentro de mim.
Uma vez, virei uma planta por uma hora de sessão. A mulher pensou que eu estava em estado catatônico. Ela ficou nervosa. Foi a mesma coisa que fiz com uma namorada, e ela teve a mesma reação. Fiquei sem falar e parado. Como se tivesse engolido uma baleia. Durante esta uma hora, a baleia que estava dentro, estava fora, e eu vivi preso dentro de um manicômio. Os manicômios são lugares muito bonitos. São lugares com muitas flores e muito arborizados. Não fiquei num lugar cinco estrelas, também não fiquei no pior lugar, mas vi muita coisa quando Alfonso me dizia que ia para Paracambi. Paracambi é aqui.
Tudo era um pouco ficar calado o tempo todo como se ninguém merecesse que você falasse algo nobre e importante.
O que todas aquelas pessoas de branco tinham a ver com o fato de eu estar vomitando sangue? Me levaram para o Miguel Couto. Pensaram que eu estava com tuberculose. O Miguel Couto era o hospital referência para casos de dengue. Havia uma epidemia de dengue na cidade. Havia muitos hipopótamos deitados. Algumas tartarugas andando de quatro rodas. Passei pela porta do hospício. Quis me levantar e fugir. O pior: fugir pra onde? Quem iria acreditar na idéia de que estava com um chip implantado dentro de mim. Havia tanta gente que se o Maracanã em dia de jogo do Flamengo estivesse ali não seria nenhum eufemismo.
Botaram tubos em mim e começaram a fazer sucção. Fui abduzido por extraterrestres.
Eu via uma luz passando pelo meu corpo de menino de cinco anos e segurei meu cachorro azul. Desmaiei por alguns segundos. Depois Fronsky estava lá:
- Voltaremos para te buscar quando você tiver 18 anos.
Macas por todo o campo. Com gente com soro andando. Tubos saindo da boca de seqüelados. Tudo ali era Acneton. Da minha veia, tiraram o meu sangue. Eu agora estava indo tirar uma chapa torácica. Como que um cara gordo como eu pode estar com algum problema que não seja obesidade? Eu deveria estar num spa, e não no Miguel Couto com aquela crise de dengue. Uma samambaia começou a crescer do meu lado feito um pé de feijão. Eu fui subindo as escadas ancorado por dois médicos fortes e gordos como eu. Havia toda aquela gente pobre, superpobre: aquele era o Brasil. Uma zona total. Gente caída no chão. Gente chegando morta. Gente morrendo. Uma fileira de corpos caídos com argolas de etiqueta nos pés. Todos munidos de seus prontuários. E aqueles médicos tão jovens, que não sabem muito mais do que eu sei de biologia, fazendo gozação com a sua cara. "Olha que cara gordo!" "Que homem gordo!" "Que baleia!" Um dia completei um triatlo e terminei entre os primeiros da minha categoria. Estou gordo agora e dormindo como no dia do triatlo. Vivo sedado e cheio de doses altas de remédio na veia. Tudo para ser invadido por uma música, tudo pra manter a boa ordem do estado. Somos a minoria, mas pelo menos falo o que quero.
O bom do cachorro azul era que ele não crescia e não morria. O negócio era eu cuidar para que ele não envelhecesse. Poxa, no ano 2000 vou ter 35 anos. Vou estar tão velho que mal sabia que estaria velho mesmo. Eu escovava a pelúcia do bicho. O cão azul era a minha companhia para todas as horas. E se o cão azul existisse. Seria do grande caralho ter um cão azul. Será que se ele tivesse um filho nasceria azul também. Se ele pudesse latir e pudesse comer, o que comeria um cão azul? Ia ter que tomar alimento e remédios de sua cor. Muitos remédios são azuis, dentre eles o Aldol. Eu tomo Aldol para não ter nenhuma ilusão de que morrerei um dia louco, num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco. Uma oligofrênica, dos seus setenta anos, uniformizada, surge diante dos meus olhos e me dá um beijo na boca. Vejo estrelas cor de rosa. Elefantes carregando Rimbaud na África. Verlaine comendo sua mulher, mas pensando em Rimbaud. Eu estou pensando em Nastassja Kinski e em seus seios pequeninos em flor. Eu estou no lado escuro e mal posso me mover, mas dá para eu me masturbar muito devagarinho. Eu gozo e minha mão fica toda branca, tomada de sêmen. Minha mão vira uma luva branca. Eu acordo às cinco horas da manhã com o esporro colossal de um enfermeiro. Durmo mal. Acordo mal. Não sei qual dos dois pesadelos é o pior: acordado ou dormindo. Saio da jaula. Já estou na jaula há um bom tempo. Quando me tirarão de lá e me deixarão ficar com os outros. Entro na fila para tomar um café da manhã. É um café com leite que tem mais água do que leite e um pão com uma passada de manteiga na ida. Eu pago para estar neste lugar, mas só a ida da faca no pão não está nos custos. Hoje eu acordei querendo dizer coisas bonitas. Aproveitei um pouco de tempo que me deixaram livre do lado de fora e apanhei uma flor no jardim. Levei a flor para o quartinho. O enfermeiro encrencou com a flor. Deu-me um esporro.
- Você virou veadinho? Que coisa horrorosa é esta. Gordo e veado.
- Eu só queria ver algo colorido aqui do fundo.
Vou comunicar esta sua vontade a um psiquiatra e ele falará com você. Eu aqui sou só o enfermeiro. Cuido de vocês, os enfermos. Meu cachorro azul não tinha nome. Nada que eu gosto tem nome. Tudo que é perigoso tem nome. O nome não é dado para diferenciá-lo. Senão nenhum nome seria igual. O nome é dado para você se igualar ou ser diferenciado dos outros. Ele voa. Ele anda em aeronaves. Ele é o meu cachorro azul. Tem outra coisa boa em relação aos cachorros de pelo e osso: ele não faz cocô e nem xixi pela casa. Tudo que tenho é o meu cachorro azul. Há muito tempo que eu não brincava com ele. Até quebrar tudo lá em casa. Tava um tempão sem olhar pro meu amigo. Sem passar uma escova nele. E se em vez de cachorro fosse um elefante de verdade meu bicho de estimação? Imagina a quantidade de merda que iria ficar no meu quarto. Ia dormir na merda. Mas pelo menos ia ter uma ducha mais forte do que a lá de casa para tomar banho. Com a tromba ele poderia me molhar todinho. Um elefante domesticado incomoda muita gente. E se eu tivesse dois. Seria um sonho. Eu ia incomodar meio mundo. Ia fumar uns baseados dentro do elefante e soltar pela tromba. Porque estes bichos todos sou eu. Menos o cachorro azul. O cão azul é da cor do Aldol. É meu amigo.
- Você quer ver algo mais colorido?
- Quero.
- O que você quer ver?
- O Sol.
Amanhã iremos à praia e jogaremos bola e devoraremos as joaninhas e afogaremos os tatuís. Vamos viajar para Ibicuí na casa de amigos que serão amigos pela vida toda. Eu tinha um amigo que estava com Aids, mas o cara foi forte e agüentou, e eu tenho que agüentar esta porra toda.
Nós só fazemos eletrochoque com sedação. O doente não sente nada. Quem sabe levando uns choquinhos ele volte ao normal. Quem sabe tudo volta ao normal. Vivo com uma velha de noventa anos. Eu gosto dela. Mas ela defeca em tudo. É lambona para caralho. Mas eu gosto da velha. Um dia a velha danou-se a comer isopor e plástico. Passou mal e teve que ser internada. Enfermeira! Um grito lancinante vindo do âmago de um dos internos. Por que não internam as mulheres junto com os homens? Será que ia virar uma confusão sexual geral? Acho que louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bulindo. Mas isso ocorre mais nas ruas. Estou sem o meu cachorro azul aqui, estou despido do que sou. Na prática não sou ninguém. Não adianta eu gritar socorro. Aqui todos estão sendo levados a algum lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares.
Meu pai aparece num dos dias de visita. Foi ele que me internou, mas eu não tenho ódio no coração. Eu gosto deste homem. Ele me dá um beijo e pergunta "como cê tá meu filho?". Eu digo que quero sair da gaiola. Ele diz que sairei quando estiver melhor. Movimento-me em sua direção e dou um beijo em sua face. Será o beijo de Judas? Será que trairei meu pai em minha loucura. E se agora viessem dois homens e me crucificassem e me colocassem de cabeça para baixo. Será que a cruz ia agüentar a banha toda?
Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha ficado na gaiolinha. Minha mãe me mentiu dizendo que eu havia ficado na ala melhor daquela clinica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficavam os casos sem solução. Mas eu achava que tinha solução. Apenas algumas pessoas estavam me perseguindo, e se essas pessoas resolvessem dar uma festa para mim naquele dia. Naquele dia em que a chuva abundava foi internado o Temível Louco. Temível Louco, quando pequeno tinha atitudes psicopáticas. Já havia matado muita gente, segundo rezava a lenda. Temível Louco me deu um beijo na face direita e deu duas voltas em volta de mim, disse que seria meu amigo. Isso foi na minha última internação. Não sei se lembra de mim.
Era hora do almoço e estavam todos os loucos na fila quando chegou o Temível Louco, que cuspia onde queria, urinava onde queria, defecava onde queria, peitava os enfermeiros, e só não era líder porque louco tá cada um na sua nóia. Louco não pensa na coletividade.
Eu tinha uma paranóia muito louca. Uma espécie de compulsão. Toda a vez que me davam três remédios, eu tinha de tomar o quarto. Eu enchia tanto o saco que me davam quatro logo. Se tomasse três, coisas horríveis podiam acontecer.
O Temível Louco começou a comer tudo que via. Mordeu a falangeta de um outro louco. Foi repreendido por enfermeiros. Todos os enfermeiros eram gordos. Os que não eram gordos eram fortes.
Eu sempre dava um cigarro para um louco que no almoço dava cabeçada nas paredes. Imagina se esse doido fosse jogador de futebol. A cabeçada dele ia ser poderosa. Acostumado a cabecear paredes, ele ia estourar as bolas de futebol por onde andasse jogando. Quem sabe a seleção brasileira não iria convocá-lo?
- Toma um cigarro. Fuma o cigarro todo. Vê se não dá mais cabeçada na parede.
Eu já estava tomando tanto remédio que estava com aquela baba elástica bovina e viscosa, como dizia o escritor.
Depois do almoço eu contava as estrelas do céu e não via nenhuma. Depois do almoço eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que agradecia por aquela comida com uma boa oração. Por que o cara é louco tem que comer o pior, com lasca de goiabada? A única coisa boa era a lasca de goiabada. Era o tipo de goiabada cascão que grudava no dente. Os loucos comiam. Minha mãe, toda vez que vinha me visitar, me mandava tomar um banho. Eu tomava um banho onde os outros tomavam. Era um lugar limpo, mas que tinha de ser limpo toda hora. A cada minuto vinha um louco e cagava no chão e deixava a merda toda lá. Imagina se houvesse um louco que fosse uma pomba. Ia sair voando e defecando por aí. Não ia ter mais careca de vovô, vidro de carro, chapéu ou boné sem merda incrustada. Mas loucos não voam, fazem sua merda parados mesmo e às vezes se lambuzam todos.
Minha mãe me trazia o sanduíche de atum que eu devorava como se fosse filé mignon. Eu tinha saudade de casa.
- Mãe, quando eu vou sair daqui? Vou sair pior do que entrei?
Se ameaçar a gente fica mais tempo. Por que você só fica na penumbra deste cubículo.
Um dia vinha minha mãe e no outro vinha o meu pai. Parecia que eles tinham a consciência pesada por ter me internado.
Eu quebrei a cristaleira.
Eu quebrei os copos de vidro todos.
Mas eu consegui livrar a casa dos maus espíritos.
Lá vem a turma me ministrar as injeções. Eles puxam a banha e dão a Bezetacil.
Bezeta.
Bezeta.
Eu quero uma Bezetacil. Bezetacil por conta de uma ferida que tenho na perna. Preciso perder 50 quilos. Uma enfermeira até disse que eu era bonitinho, mas precisava perder uns quilinhos. Eu podia fazer o programa da casa da banha. "Vou dançar o Cha cha cha... Casas da Banha." Era um porco. Suíno. Sujo. Não tinha noção do que era degradante. Mas um dia, sem dúvida, ia criar alguma espécie de biodegradado e ia limpar minhas impurezas e ficar limpinho. Limpo por fora. Por dentro estaria sempre com aquelas marcas que os animais deixam, das mordidas. Com os hematomas na alma. Estaria sempre me procurando e encontrando pedaços aqui e acolá. Temível Louco passou ao fundo. Ele já estava fora do cubículo dele.
Quando vão me tirar daqui? Enfermeira!
A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício. A liberdade, só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo. Eu podendo sair por aí com Rimbaud e Baudelaire. Viajando para Angra dos Reis.
Rimbaud matou uma onça que circundava o meu corpo outro dia, de noite. Outro dia, de dia, comemos junto a gororoba do hospício. Eu e Rimbaud. Ele está internado devido a drogas. Ele manca um pouco. Deve ter seus quarenta anos. Cheguei a perguntar o porquê só escreveu tão pouco tempo. Ele me disse que detestava escrever. Eu gosto é de sentir o vento sobre os meus cabelos. Há brisas perigosas para um cara franzino como Rimbaud no hospício, mas ele é um cara safo, sabe se ver livre das adversidades. Logo estará recebendo alta.
De volta ao cubículo e as injeções. Eles não confiam mais em mim. Só dão remédios via injeção. Acham que eu vou cuspir o remédio ou malocar em algum lugar. Que raiva tem de mim esses médicos. Vem cinco me segurar. Eu me debato como uma baleia. Mas depois eu fico quieto. Depois eu me aquieto. E quase não sinto devido ao tanto que puxam a banha. Eu quase nem sinto a dor das injeções.
Abriu um belo arco-íris que só eu via através de uma janela ao longe, bem ao longe. Aquele dia eu chorei por estar sozinho. Chorei por não ter um emprego. Chorei por não ter uma mulher. Chorei por não ter filhos. Chorei por não ter uma família. Chorei por ter 37 anos de idade e viver ainda como um adolescente. Por que você está chorando Gordo? Eu choro pelos gordos do mundo, pelos que querem comer agora uma torta de maça ou um brigadeiro, mas não tem dinheiro para poder comprar todas as guloseimas do mundo. Eu mesmo choro por que queria te comer, ó filho da puta? Te comer assado. Ia fazer que nem os canibais e ia comer gente. Mas eu prefiro não ser tão doido e comer açúcar. Bomba de chocolate, mil-folhas, sorvete de flocos, cocada, pé-de-moleque. Ia virar a dona redonda e estourar de tão gordo.
A única hora em que eu saía do cubículo era no horário das refeições. Mas tinha um enfermeiro que não tirava o olho da turma nenhum minuto. Imagino se eu fosse um funcionário do hospício. Deve ser muito difícil lidar com toda aquela clientela, com gente de todo tipo. Com caras da Zona Sul e com garis da Comlurb. Com velhinhos ergofrênicos e com procuradores-gerais da república senis. Os loucos mesmo devem ser os mais fáceis de serem cuidados. Todas as vezes eu desacreditava em Deus. Se havia um lugar como o hospício era sinal de que Deus não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem estava dentro daquele pequeno inferno.
Eu era criança ainda e estava no clube me divertindo na piscina quando vi uma criança pequena, menor do que eu, um recém-nascido, se afogando. Eu fiquei impactado pela cena e demorei a salvar a criança. Estava ali parado. Bobificado. Veio outro guri. Foi mais rápido, pegou a criança que se afogava e a tirou da piscina. Foi feita toda uma festa para o herói. Uma festa que era para mim. Eu fiquei quieto, no canto, percebi neste dia que uns nascem para ser heróis, outros nascem para serem seres comuns. Eu estava condenado a ser um ser comum. Jamais seria um super-homem.
Eu voltava pro cubículo. De bom só a goiabada e a bundinha da enfermeira. Às vezes eu vou dormir e fico pensando na enfermeira de noite. Ia gozar só de botar meu corpo sobre o dela. Só de poder sentir sua carne sob a minha. A primeira vez que fiz sexo foi com um Javali. Seguraram o bicho pelas patas e falaram penetre. Eu penetrei meus quinze centímetros dentro do bicho e aí o soltaram. Eu gozava justamente porque o javali pulava e pulava. O cu do bicho era espinhoso. Doía meu pênis. Como doía meu pênis. Depois de muito tempo o bicho ficou cansado. Gozei seis vezes direto. Acendi um baseado e ele foi para outra esquina, e eu fiquei ali chapado. Eu usei muitas drogas na adolescência. Uma vez, quando tomei um chá de cogumelo, fui parar nas cisternas da casa batendo um papo filosófico com o meu eu. O pior é que eu encontrava resposta. Nem sabia que tinha um eu superior. Arriscava umas perguntas sobre o futuro e o eu me dizia tudo. Só que depois da ação do chá de cogumelo não me lembro de nada que eu disse.
"Um papa Mike entrou armado."
Eu ouvia os tiros da ação. Andava de um lado pro outro. Minha adrenalina aumentava na madrugada. A madrugada começava com aqueles tirambaços. Será que alguém estava ferido.
- Ontem, mãe, deram tiros aqui dentro. Conta pra mim o que houve. Conta pra mim. Você sabe que eu sou curioso.
- Se isso ocorresse eu te tiraria daqui na hora, meu caro. Você está aqui para melhorar. Parar de destruir a casa de mamãe e ponto.
Na verdade tinham matado um cara lá dentro. Um policial militar atirou no outro com uma arma branca. Temível Louco estava envolvido.
Todo dia antes de dormir eu rezava a ave-maria. Todo o dia eu pedia a Deus que me tirasse dali o mais rápido possível e que o mais rápido fosse o dia seguinte. Depois eu não acreditava nem em Deus e nem na ave Maria, mas eu rezava. Não custava nada rezar. Não pagava nada pedir. Algum crente num dia de domingo aparecia bem perto da minha cela e deixava um santinho. Eu olhava e lia quando as doses não eram altas e me deixavam ler, depois rasgava o folhetinho. Meu Deus! Os crentes estão ganhando o mundo. Até aqui eles vinham para angariar os fodidos. A religião virou uma sacanagem do caralho. Acho que sabiam que havia muitos alcoólatras lá dentro. A religião não é só o ópio do povo. Mas é o que mantém o povo feliz. Triste do povo que precisa da religião para se apoiar. É pior do que um louco que tem cura, mas precisará sempre de um apoio de outra pessoa para ser feliz. É melhor ser louco incurável.
Temível Louco comia a comida dele com a mão. Dizem que ele matou gente e tudo. Sei que nos dias de visita ninguém nunca veio ver Temível.
As pombas voavam no céu prontas para defecar em alguma cabeça ou algum vidro de carro. Lembro-me de uma vez em que um doente mental levou formicida para dar as pombas. O resultado foi aquele rastro de pombas pelo chão. Mortas. Todas elas.
Havia um louco entre todos que era homem, mas se vestia de mulher. Gostava de dar cabeçadas na parede e vivia tremendo. Outra lembrava a minha avó por parte de mãe, sempre muito elegante. Outra, ainda, tinha hábito muito estranho: enchia um copo inteiro de café e outro de leite e tomava cada um sem misturar. Não era coisa de gente louca. Uma vez cheguei perto dela e ela falou de Heráclito e Parmênides com um sotaque espanhol. Era chilena. Fiz toda uma ficção na minha cabeça de que lutara por Allende e perdera como todos os chilenos. Fora perseguida política. Recebeu os maus-tratos do estado. Foi torturada e acabou num hospício do Brasil. Ela era professora de sociologia. Com certeza deveria ter filhos que não sabiam de seu paradeiro e viviam de lugar em lugar procurando a mãe. Quantas coisas os governos fazem para destruir a vida dos que incomodam. Incomodar deveria ser condição de bom funcionário estatal. Porque ver as maracutaias e não fazer nada, ver o povo perdendo força, o povo sem dinheiro perdendo dinheiro, pagando salários altos a burocratas...
De súbito ouvi berros: "Aahhhhhhhhhhhhhhhhhh!" Desespero. Alguns internos estavam fazendo arremesso de oligofrênicos. Pegavam-nos e jogavam oligofrênicos para cima e numa vala também. Internos menos loucos comandavam o evento. Sim, aquilo era um evento. Uma espécie de ritual.
Eu continuava com a minha paranóia e com o meu chip implantado dentro de mim. Tendo engolido um grilo aos 15 anos. E com seis tendo sido visitado por extraterrestres que me buscariam em casa com 18. Já havia passado dez anos e os extraterrestres na vieram me buscar. Fronsky não veio me buscar. O chip é para a CIA e a KGB me dominar. Sou importante porque sei peidar sem sentir o próprio cheiro. Desenvolvi uma técnica de filtragem. Brincadeira à parte. Sempre me senti um ser perseguido. Ando nas ruas sempre olhando pra trás e de vez em quando saio em desabalada carreira e correria. Uma vez meu psiquiatra pegou o ônibus comigo para provar que não havia problema nenhum em andar de ônibus no Rio, na Zona Sul. Morreu em 2000 paus, mais o relógio. É que o ônibus foi assaltado.
Pegaram uma interna e arremessaram ela. Os doidos tavam arremessando todo mundo que aparecia na frente deles. Jogavam num barranco. A pessoa podia se machucar, mas os outros loucos riam e queriam mais. Formavam uma fila para serem arremessados barranco abaixo.
A noite chegava e com ela vinha o pior: a trilha sonora da noite. O hospício ficava do lado da favela. Era funk a noite toda e o dia inteiro. "Lacraia, lacraia, lacraia... Vai, Serginho." Dormir ouvindo aquele lixo cultural. Aos berros.
Eu achava que havia uma porta muito estranha de onde as pessoas não mais voltavam. Entravam por aquela porta e sumiam. Ficava de olho. Há dois dias que a chilena havia entrado ali e tinha sumido. "Eu vou pra Paracambi. Se você não comer vai pro Caju." Eu não agüentava mais ficar no cubículo. Estava ficando com problemas nas articulações. Nenhum louco merece aquele tratamento. Sei que no meu caso era um castigo por ter quebrado a casa toda. Era algo que funcionava como castigo de criança.
Já tive que escrever 200 vezes, detestando o professor de matemática, "eu gosto do professor de matemática". Agora o copiar e o colar do computador acabou com o castigo.
Quando vinha o sol, ia pingando um a um cada funcionário. O hospício bombava de cheio. Estava superlotado. Era domingo, dia de visita. Há horário para visita diária e dia de visita universal que era o domingo. Eu ainda estava com o meu chip, que às vezes me incomodava fisicamente. Eu pensava até quando o meu chip era um derivado do grilo de antes. Eu tinha momentos de lucidez. Eram poucos, mas tinha. As drogas usadas às vezes têm ação sobre o organismo. Mas tem gente que não melhora nem com remédios. Para que serve internação então? Para reunir o entulho humano.
Quando o hospício bombava de cheio era a hora de ficar quieto. Qualquer coisa você poderia ser amarrado à cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte. Muitos alcoólatras viviam amarrados devido a síndrome de abstinência. O grande mal das clínicas é que elas misturam os doentes. Ficam todos internados juntos.Tinha vontade de comer o bolo da vovó. Mas eu não tinha mais vovó. Muito menos o bolo da vovó. O que havia era uma paçoca de fubá, muito sem gosto. Mas que todo mundo comia a regalar de olhos. A comida de hospício era aquela comida feita para duzentas pessoas por vez. Era Matrix. Não tinha tempero. Era muito ruim mesmo. Mas fica até chato reclamar quando tem tanta gente passando fome e quando tinha gente dentro do hospício que achava aquilo a oitava maravilha do mundo.
"Hoje não teve goiabada."
Eu estava ali há dez dias. Há dez dias que comia mal. Pelo menos ia emagrecer. Tinha saudade da comida de casa. Quando não tinha goiabada não havia nada de que gostava. Mesmo que grudasse nos dentes era boa. Lembrava infância. Lembrava o nordeste. Eu queria comer uma maçã. Há muito tempo não tinha uma maçã. Fruta ali era banana. Eu queria maçã, abacate. Estava seco por uma vitamina de abacate.
Entrou uma barata no cubículo. Tive que matá-la com a mão. Não havia outro instrumento. Os cubículos são feitos para a pessoa que está dentro não ferir ninguém, mas também não se ferir. Para não me ferir não havia nada no cubículo. No começo da internação às vezes se fica amarrado. Cada um tem o tratamento que vai de acordo com a sua periculosidade.
Há muito que não se fazia mais a operação de lobotomia. As práticas de eletrochoque só eram ministradas com sedação. Havia a luta antimanicomial. Mas onde pôr as pessoas que não têm família e são casos perdidos?
Eu mesmo tinha medo do meu futuro. Talvez fosse aquele mesmo, conviver com todo o tipo de gente. Gente sã, gente doida, policial, gari. Não tinha nada contra os garis, principalmente eram muito limpos e sempre querendo fazer uma faxina. Mas o dia inteiro preso, vendo tudo de longe. Era triste. Caiu um toró. Chovia. Ficava mais triste. Eu não me lembrava de um amor. A última vez que fora amado, ela me disse que não me amava. Tinha se apaixonado pela loucura que há em mim. O louco às vezes é muito sedutor. Sentia saudade de ler um bom livro no dia de frio, no de calor também. Sentia vontade de ler um Henry Miller.
Havia muitos morros em volta do hospício. Em vinte anos tudo estaria tomado pela favela. O morro ia comendo o morro, e cada vez mais existia menos lugar verde e mais telhado e casas insalubres. Naquele cubículo era sempre inverno. Fazia sempre frio. Eu num me incomodava, gosto de frio. A gente não tem de tirar a camisa. Nenhum gordo gosta de tirar a camisa. Mostrar as banhas não é o melhor programa para um gordo.
Detesto espelho. Espelho só serve pra mostrar como a gente piora com o tempo. A primeira coisa que quebrei lá em casa foi o espelho. Nem me importei com os treze anos de azar. Depois fui para as bebidas e, tomado de uma loucura inconteste, fui jogando uma a uma as garrafas de whiskie no solo. Ficou um lugar perigoso. Um mar de cacos de vidro. Algumas coisas não quebraram, como o vidro da grande mesa da sala que se mostrou indestrutível. Um enfeite de mesa também ficou inquebrável. Havia coisas que se derretiam só de tocar, que se autodestruíam com um toque e outras que se mantinham impávidas. Meu pai veio e pediu para que eu parasse e eu não parava. Minha sobrinha pequena gritava. Meu irmão gritava. Minha mãe gritava. Minha irmã gritava. A empregada lá de casa gritava.
"Não, isso não!"
Isso eu quebro e vou quebrar mais. Eu quebro. Eu quebro. Eu quebro...
Chegou a polícia e me algemou.
Levaram-me pro Pinel.
- Por que você quebrou?
- Quebrei porque sou feito de caos e quando o caos me convida a desordem eu desordeno tudo. Tudo estava muito calmo. Menos eu. Eu engoli um chip. Eu bebi um chope na rua e botaram um chip dentro do chope. E eu engoli o chip que faz com que eu faça tudo isso, até o que não quero. Mas eu só podia me ferir com tantos cacos, ainda mais andando descalço pelos cacos.
- Você vai ser removido para a Clínica. Nós estamos superlotados.
- Eu não quero ir pra clínica e nem ficar aqui.
E comecei a quebrar o consultório do médico, até vir um enfermeiro com uma baioneta.
"Por que você não morre?"
Há tanta gente velha aqui.
Um dia ainda sobrevivo pra mostrar todo este jogo sujo.
Fui pra perto do Cristo. Da minha cela dá pra ver o Cristo. Colocaram-me lá para ver se eu morro um pouco, e de vergonha por não crer em Deus. Havia borboletas por todo lado. O hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas podre por dentro. O modelo hospício tinha que ser mudado. Mas como a minha família me agüentaria quebrando tudo? Nas horas em que me vem uma pertinência maior vem a pergunta: o que eles poderiam fazer? No dia da crise não se pôde fazer nada, e o que fazer para não entrar em crise?
Você é um caso perdido. Você é um idiota, você é gordo e escroto. Você só fala isso por que eu estou amarrado.
Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado. A ambulância dourada. As enfermeiras douradas tocavam-me com suas mãos douradas.
Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos enfermeiros.
Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei:
- Pra que isso Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate irmão. Se você morrer não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim. Rimbaud tudo vai ficar da cor que quer. Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
Tudo ficou verde da cor dos olhos de meu irmão e da cor do mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.
Tudo ficou Van Gogh: a luz das coisas foi modificada.
Enfim, me deram uns óculos. Mas com os óculos eu só via as pessoas por dentro.

por Rodrigo de Souza Leão

RUE DUPHOT, 8

O piano brilha no palco vazio Os músicos entram O teatro está cheio O homem e a mulher estão sentados na quarta fila central O vestido dela é vermelho Tem um corte do lado até a metade da coxa direita Ela cruza as pernas Uma delas nua se não fosse a meia Eu não devia ter vindo ela pensa Não sem avisar Eu não devia As pessoas em volta conversam O homem aperta a mão da mulher na sua As luzes do teatro piscam Os músicos preludiam O golpe do arco no cello (portato) Entram o maestro e o pianista Vai começar Silêncio O pianista senta-se no seu lugar O maestro anda até a frente do palco e cumprimenta a platéia Seu olhar de sol poente vagueia autômato sobre as pessoas Até tremer na coxa nua dela Até reconhecer os olhos dela Luas cheias Verdes O homem estranha o frio da mão da mulher na sua Eu não devia Escuro Dois focos de luz se cruzam no meio do palco Um no maestro em frente à orquestra Outro no piano Eu não Agora O maestro levantou a batuta
BACH, Johann Sebastian. Cello Suite No.1 in G, Prélude.

O homem e a mulher entram no quarto do hotel. Paris é uma festa mesmo no inverno ele diz arrependido. Ela não ouve. A sentença fica boiando no silêncio dos olhos vadios dela. Você está feliz ele pergunta desajeitado. Está gostando da viagem? A gente estava precisando, não? Gostou do concerto? Ela responde você já me traiu? Tira os sapatos o vestido as meias a calcinha os brincos deita-se de sutiã. Você tem cada uma, ele nega. Seu corpo de black tie deitando-se sobre o dela. A bunda do homem mexendo (spiccato). Mexendo. Pra dentro Pra fora Pra dentro Pra fora Pra fora
CHOPIN, Frédéric François. Prélude, Op. 28, N°.4 in E 'Suffocation'.

De manhã ela acorda primeiro. Eu sempre quis te amar ela pensa olhando para o homem que dorme. É tarde ela diz empurrando o braço dele adormecido em torno dos seus seios. Bonjour ele suspira enfim feliz. Antes de dormir eu pensei que a gente devia ter um filho. Ela não ouve. Antes de dormir pensou nas mãos do maestro (martelé). Você já me traiu? Ela insiste em saber. O homem tira o resto da roupa que dormiu com ele. Senta-se na cama. Nu e sincero confessa o nome da melhor amiga dela. Confere datas. Conta detalhes. Tenta motivos. Alisa o suor do peito. Procura mais fôlego sob o verde valente dos olhos dela. Paris é uma festa mesmo no inverno ela diz sorrindo. E sente uma saudade esquisita de subir em árvores. O homem sente outra coisa. Um mal-estar súbito. Algo no coração que ele ainda esfrega. Até parar. Até ela se desesperar. O telefone. A mulher liga para a recepção. Mon mari mort ela avisa. Procura o casaco. Encolhe-se dentro dele agachada. Os braços envolvendo os joelhos. Num dos cantos daquele quarto azul. Azul azul azul. Insuportavelmente azul.
TCHAIKOVSKY, Pyotr Ilich. Concerto for Violin and Orchestra in D, Op.35

A mulher veio depois do almoço do maestro, eta homem mais fominha e de paladar tão exótico: além de sádico, mistura queijo-de-minas com foie gras e doce de leite, deixa poucas migalhas, tenho que me virar pelo apartamento sombrio. Quando ela chegou, ele já esperava, a porta estava aberta e ele disse "tire o casaco", ela tirou, ficou nuinha em pêlo, pelo jeito, se ele dissesse "voe", ela voaria, mas agora estavam se agarrando, se lambendo, se babando, "onde eu me acabo", ela sussurrou com pressa, ele respondeu "aqui, ó, aqui". Eu nem vi o ó, com essa fome danada, aproveitei o ensejo, corri pra dispensa, que é onde ele foi me achar, atrás de uma garrafa de vinho, azar o nosso, meu e da garrafa, que ele carregou. Ela, debaixo do braço direito, eu, suspendido pelo rabo preso na sua mão esquerda, meus olhos se arregalando dentro dos olhos dele, encarei, ele riu da minha valentia ou da sua boa idéia, vai saber que idéias agiam naquela cabeça, talvez me fazer de spalla e de bobo, e saiu andando, me balançando no ar. Entramos os três, o maestro, a garrafa e eu, no quarto onde havia uma cama de casal e, amarrada nela, peladinha da silva, a mulher, um frágil X vendado. Só deu tempo de eu ouvir a voz dele, grossa, rouca, perguntar afirmando "você me ama", levar o susto e escutar o "sim" fraquinho dela, já caído naquele corpo, tontos, o corpo e eu. E notar que melhor sorte nessa hora teve a garrafa de vinho, que ele abriu com método e implicância, sentado numa cadeira ao lado, demorando a derramar um bocado no copo em cima do criado-mudo, eu disfarçando pela pele dela afora, galgando seus cumes, melando todo nas suas águas, roçando-me nas suas marcas rosadas, tateando seus calafrios, trançando nas suas veias azuis, onde girava um mundo de vontades e medos. Pensando por que não nasci gato, os gatos usam a cauda para se equilibrar, os gatos usam 32 músculos para controlar as orelhas, os gatos conseguem ouvir as suas presas rodando as orelhas independentemente uma da outra, há mais gatos em Londres do que pessoas na Noruega. O maestro, decerto, pouco se importava com meu modo de pensar, pelo seu sorrizinho sarcástico devia estar pensando na piada que pergunta qual é a diferença entre Deus e um maestro e responde que deus sabe que não é um Maestro. De repente ele se levantou, me deixando ver, num relance, seu facho aceso e torto. E partiu pra ignorância, acertando um sustenido de direita no pé da minha orelha, que saiu comigo tropicando pelo quarto, eu disposto a voltar pra dispensa, apesar da bambeza, arriscando uma olhada a tempo apenas de perceber o corpo dele desabando sobre o X, um Y violento que invadia a mulher, os gemidos dela, a bunda do maestro mexendo (staccato spiccato), mexendo, pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora, pro fundo.
Tem três dias que eles estão nessa função.
COPLAND, Aaron. Fanfare for the Common Man, for brass orchestra & percussions.

Tudo azul?
Era assim que uma vizinha de infância me perguntava se estava tudo bem. Ela me deixava irritada. Como a outra, gorducha e ofegante, que sempre respondia com bolinhas cor-de-rosa e sorria, piscando um olho só, cúmplice, que antipatia. Como mamãe, que passou a vida tentando me convencer da beleza que há no azul, sobretudo, naqueles vestidos de organdi suíço que ela mandava bordar para me amordaçar, singelas camisas-de-força. Não adiantava nada papai (staccato volante) invocar a santa paciência (dela) e o direito da menina (eu) ter gosto próprio: cresci com pouca cor, quase nenhuma coragem. O que seria dos olhos, se todos gostassem da remela? E do branco, se todos preferissem o negro? Cansei de ouvir ele dizer. Não adiantou nada. Fui domada pelo azul.
Tudo azul?
Agora sim. Ele morreu. O homem que nasceu para ser o senhor do meu destino, cercar-me de luxos e ouro, até um anel de diamante naturalmente azul e adequado a poucas mulheres no mundo, vida boa, sexo regular e sagrado nos dias ímpares, discreta intimidade com o poder, tráfego folgado no jet set e na espetacular residência com meia dúzia de salas, quartos, banheiros, piscina, sauna, ampla área de lazer e vista definitiva para a solidão. Mamãe nunca errava.
(Nada mais azul que a ausência de significado, o desamparo, o aniquilamento, o desespero. Tudo azul da cor do céu que nos desabriga, da cor do mar que nos afoga. Lindo na poesia e nos jeans. Perfeito nas receitas dos remédios suicidas.)
Precisava sair daquele quarto. Sair no rumo do meu desvario.
Mas havia a porta giratória do hotel.
MOZART, Wolfgang Amadeus. Marche Funebre del Signor Maestro Contrapunto.

Portas giratórias, daquelas cheias de vidros dividindo as partes, sempre me confundiram. Eu nunca sei se elas me levam ou me trazem. Sou capaz de gastar um tempo sem fim rodando no seu interior, a direção perdida, ou quase. A porta daquele hotel me trouxe de volta ao quarto (ricochet). Fiquei ali zanzando por um tempo, a memória vindo à tona. Ao telefone, primeiro pedi urgência com aquele corpo que eu não queria mais. Morto ele não valia nada, era só mais um traste, a bagagem inútil que se perde com prazer em qualquer aeroporto (deixaria a outra bagagem também, não seria difícil viver sem o seu peso). Depois liguei para um número há anos guardado na ponta da língua. O maestro. O arrepio gelado entre o umbigo e o coração.
Você me ama?
Muito.
Eu vou.
Minha liberdade é vermelha, descobri em seguida. Como o começo de todas as auroras. E saí nua se não fosse o casaco, cega, ao seu encalço. Com a mesma certeza que tem o chicote no ar. Antes de açoitar.
BEETHOVEN, Ludwig van. Violin Sonata No.5 in F, Op.24 'Spring', Allegro.

por Silvana Guimarães

ALGUMAS COISAS QUE OS LEITORES DEVEM SABER

E porque não havia mais nada para ser dito, ela o matou. Não por ódio ou tédio. Não era mesquinha para tanto. As frases desapareciam no ar. Era tempo. Por uma esperança banal de ouvir novamente a voz, ela cozinhou para ele. – Bom – ele disse. E comeu a carne, o arroz e a salada. Depois, com um gesto, pediu mais. Ela, quase bondosa, fez outro prato, farto como o primeiro.
Ele a viu primeiro. Na plataforma de embarque, ele a olhava sem registrar enquanto ela pousava a valise no chão. Em seguida, um vendedor de refrigerantes o distraiu. No futuro, não haveria lembranças para eles.
Na fila do açougue, ela percebeu. Aquilo seria para sempre. O cheiro da carne crua e gelada. De olhos fechados, o cheiro atravessava o papel cinza e molhava suas mãos. Defrost. Logo ela, vegetariana desde a adolescência.
Era apenas superfície. Amavam-se em superfície. E sou eu agora que digo: nada foi mais verdadeiro. Quando, de noite ela tornar a sentir saudades dele, nenhum nome lhe virá a cabeça. Só o calor dos vivos. O calor do dorso das mãos dos vivos será a única recordação que a fará dormir.
Depois, esgotaram-se. Então era isso. Além dele, mais nada. Ele era o limite. O corpo sem fim que a cobria em criança. A língua do mundo. Ela parada em frente ao mar. Sem ter a quem ofertar suas perguntas. Ele transbordava.
- Você já vai? - Ela perguntou vendo-o arrumar as malas. - Já. Já passou da hora. A velha história.E pensávamos que podíamos escapar
Houve neste momento um esboço de cumplicidade detonado pelo meio sorriso de ironia. Olharam-se como a pensar: será? Será que a quase-piada, o ensaio de leveza... Mas “como a pensar” não significa necessariamente pensar. Olharam-se mas não se pensaram. Quietos, ignoraram a ironia salvadora.
— Não, não podemos escapar. Não somos diferentes dos outros. Somos os mesmos.
E porque não havia diferença entre morrer e ir embora, ela o matou. E ele, tácito, ainda teve tempo de pensar:
- Ela realmente não me entende.


por Giovanna Dealtry

NATUREZA MORTA 17/21 – DA SÉRIE MAÇÃS DE CERA

Fui dar uma volta pra conhecer o lugar e experimentei fazer sexo com recém-nascidos só para ver como é que era e não gostei. Num outro país pulei sem pára-quedas da estátua mais alta e lá embaixo um gigante me esperava com braços plácidos, soergui-me e fui embora imediatamente. Num outro continente carregaram-me no colo de um lado para o outro durante toda a temporada. Já no arquipélago de nuvens estáticas, eu fui acordado durante os 40 dias da minha estadia com 4 mãos que me despertavam dos sonhos com movimentos circulares e ritmados em adágio, ma non troppo; andante moderato e presto fortíssimo. Em seguida mergulhavam meu corpo em ofurôs hereditários com leite de cabra, gordura de baleia com amêndoas, e por fim no de sangue de moça. É importante dizer que a sessão descrita proporcionava em mim a capacidade de enxergar claramente durante as 24 horas subseqüentes, sem que necessário fosse o levantamento das pálpebras. Vê-se com mais atenção o infinitamente pequeno e o infinitamente descomunal, o que está ao alcance de nossas vistas nuas não nos alcança. Poder-se-ia dizer também, que o essencial é translúcido aos olhos. Numa outra viagem aportei num país esmaecido e ali me propus uma cegueira temporária – previa três, mas foram dezoito dias. Nessa época conheci o mundo pelo contato dos corpos e suas temperaturas; pela fluidez dos líquidos e seu grau de adstringência; pelos zumbidos, arrastar de chinelos, espirros estridentes e soluços graves. Fui transportado por nuvens em filetes como nos desenhos animados que penetrando pelas narinas me faziam de sr. Leôncio levitando até chegar de olhos fechados e sorriso maroto ao manjar aromático.
Viaja-se acreditando em tudo que é exótico. Está escrito nos impressos de viagens um pouco daquilo que não acreditamos. Naquele dizia: “...onde vendem desde carne de cobras, vacas, porcos e meninos virgens”.
Fiquei no hotel bebericando e vi pela janela milhares de pessoas se afogando no mangue. Da outra janela um outro hóspede repetia em disparada o sinal da cruz. Outro dia conheci uma feira de antiguidades onde não se vendia nada, só a troca era possível. E para selar o acordo um dava no outro uma chupada no pescoço. Perder é aceitável mas perder-me não posso, pois não me encontraria jamais. Só no meu mundo eu me uno – mas ele não existe. Então voltei ao lago pra me refazer, mas ele estava seco. Pedi ajuda como quem pede comida por necessidade mas não me atendiam na minha língua. Entrei nas salas de ambientes de um cyber café e masturbei mortos até que lhes voltassem o ânimo e eles me imploraram para deixá-los em paz. Asqueroso! gritaram em uníssono.
Habitam de palácios a quitinetes. Poleiros e buracos também servem. Estacionei o carro urgente próximo a sarjeta e da boca de lobo serpenteou um homem de meia-idade agarrando minhas pernas com suas patas lodosas como se fosse um cachorro no cio e gozamos um depois do outro. Ele ejaculava um carmim fétido que impregnou bem aqui ó nas minhas unhas, pregas e entranhas.
Encontrei Lúcifer chorando e se definhando em tristezas mundanas. Fiz o que devia ser feito: afaguei seus cabelos para que dormisse e depois liguei para a polícia.
Não fazia sol, nem chovia. Na Autovida, os carros de 0 a 100km/h em apenas 4,3 segundos ficaram pendurados nos prédios como bolas multicoloridas em árvore de natal. Da outra janela um outro hóspede não tão espantado confraternizou: Feliz Natal! E eu só consegui dizer: Feliz Natal, Feliz Natal! E depois a cidade toda em coro.
Todos sabem o que fazer perante a estátua do Cristo Redentor, só que eu nem tanto, então ainda criança – com toda vergonha e acanhamento que carrego até hoje - fazia o sinal da cruz como quem coça o corpo. A primeira coçadinha na testa, depois no peito e assim se seguia, e me ruborizava se alguém no ônibus percebia.
Viaja-se acreditando em tudo que é exótico. Está escrito nos impressos de viagens um pouco daquilo que não acreditamos. Naquele dizia: “...gérberas translúcidas, golfinhos verdes, jacarés hermafroditas...” O agente me confidenciou: “cuidado: o bicho homem não é previsível, ele é surpreendente”.
Na fachada de um misto de ateliê e antiquário, havia uma pequena lousa verde escura com os dizeres: “aceitamos maçãs de cera como modelo para uma pintura.” Automaticamente lembrei-me das frutas no hall do hotel. À noitinha duas maçãs se acasalaram por debaixo do meu sobretudo. No dia seguinte eu estava onde deveria estar. Dois homens – um fraco e outro forte - violentaram a loja, arregaçaram o caixa, esfaquearam quadros, imolaram o proprietário e me açoitaram. Acho que por causa da minha incapacidade de chorar, o homem mais fraco veio de estilete em punho em minha direção e numa estocada seca dilacerou minha orelha esquerda. Nada adiantou.
Em determinado lugar, não falo qual pois pode ter mudado, encontrei minha alma gêmea aristofaniana, não falo qual pois pode ter mudado. Eu mentia, ela mentia, depois ela mentia mais um pouco e eu não aceitava perder o posto. Hoje só trocamos e-mails e continuamos sendo os mesmos impostores. Nada mudou. Só nos conhecemos melhor. E afirmamos convictos que mentimos e nos enganamos bem - sem nenhum mal no coração, sem nenhum rancor no fígado, sem nada a temer.
Fiz, mas não me lembro onde: cooper sob nevasca com guardas-costa e ciclismo com capacete e colete a prova de balas. De um certo lugar à outro tive que viajar em comboio carregando imagens santas como passaporte. Numa prova de tiro abati 3 mamutes e duas velhas senhoras conseguindo com isto apenas um mísero certificado de participação. Participei de um rally armado até os dentes e venci, levando para casa um blindado que está estacionado aqui na sala de estar.Hoje quando saio, volto sem saber onde estive. Hoje quando volto, me deposito com todo meu peso sobre a poltrona sem querer saber o que aconteceu - esqueço-me - atestando-me mais uma vez imune e impune. Às vezes saio e sinto medo das caras que me reconhecem depois de tantos crimes inconfessáveis e outros secretos. Mas me confortam a massa aterradora de cúmplices que se submetem à mim. Então me sinto em casa e vou pra cozinha preparar perdiz com romanée-conti. Minha casa é minha máscara , minha cara, minha casca. Minha câmara mortuária. Minha casa é minha cova larga onde eu morro cada dia mais um pouco. Pouco a pouco. E mais um pouco. Até o fim.

por Wagner Gil

O PEQUENO CIRCO DA MALDADE

O galpão inchado de homens na infecção do jogo: gritos, aguardente, mãos cheirando a dinheiro. Parece ter sido ontem tanto barulho, a festa dos machos diante da sorte e do azar. Mas agora, o galpão só um esqueleto só: madeiramento velho, roído de cupim, úmido, com os reumatismos próprios da idade, do abandono. Mas antes, que lixa de dentes poderosos! Como sabia roer homens e limpar muito bem limpas suas ossaturas. Não foi um só ou dois apenas que entregaram esposa ou filha para saldo de dívidas. Também não faltaram os suicidas, os que se penduravam em cordas (quase risível a cara trágica, o grito ridículo solto na corda frouxa), os que tomavam veneno, os que sofriam a terrível enxaqueca do tiro na cabeça. Ocorrências banais, qual das cidades do mundo não as têm?!
A Igreja sim, se preocupava e ia encontrar nas Escrituras uma enorme variedade de conselhos, proibições, ameaças da ira divina. O bispo, em suas visitas pastorais, com aquela voz mansa e uniforme, igual em todos os bispos e padres e homens que se pretendam de Deus, o bispo advertia dos perigos dos jogos de azar, dos vícios que deles decorriam, do coito de malfeitores que a cidade fatalmente se tornaria se insistissem no pecado. Advertia do riso debochado de Satanás, perante a queda dos filhos de Deus. O bispo sempre insistiu nesse ponto em seus sermões, no riso debochado de Satanás. Sempre o sublinhou. Acaso já o teria visto, para descrever com tanta minúcia o esgar da boca, a contração vesga dos olhos, a malícia das sobrancelhas, as rugas ondulantes da testa? Seria por isso que o bispo nunca sorria? Por já ter visto, como quem vê um relógio aberto, essa grotesca deformação do riso? Dizia, mansamente as mais terríveis palavras: “Afastem-se do riso, filhinhos, afastem-se do jogo, das bebidas, das mulheres, de tudo o que é decadência, vício, perdição. Afastem-se da mesa dos escarnecedores... Temei o riso debochado do inimigo, temei o riso de Satanás...”
Mas o galpão permanecia e é bem verdade que naquele local muitos fizeram sua glória, ou relâmpagos dela. E mesmo havendo quem preferisse o prostíbulo, o galpão sempre reinou absoluto na preferência da maioria. E algumas esposas se aliviavam de saber que seus maridos estavam seguros no jogo e havia as que se alegravam de sabê-los perdedores, pois que assim não teriam o que gastar com putas. Muitas rezavam, pois mulheres, em geral, temem as brigas, os ponteios, os jogos dos homens. Temem malfeitores que se comprazem em fazer misérias. Temem os perdedores que voltam para casa bêbados e violentos e que descontam na família a carta perdida, o número errado. Temem o estranho que não bebe, não fuma, não joga, mas que possui uns olhos cediços que convidam ao adultério. As mulheres, em geral, temem. Mas como sabem ceder...
Vendo o galpão hoje, carcomido, tudo parece ter sido ontem. Parece ter sido ontem aquele dia em que ele amanheceu com feitio de circo, a lona grossa e colorida vestindo-lhe as paredes; por dentro, armado um vasto picadeiro. Todos viram, todos perceberam a misteriosa mudança, mas ninguém ousou comentar nada. Todos calaram e guardaram para si a imagem de circo bizarro em que o galpão se transformara naquele dia. Todos fingiram que nada ocorrera. À noite, cada homem temeu ir para lá. Mas como faltar? Por que faltar? Foram todos e embora o barulho e a aguardente e tudo o mais fosse como nas noites anteriores, nada era igual de verdade. Nem os homens eram iguais. Esperavam algo, mas esperavam lá no secreto de cada um. Esperavam o que não sabiam o que seria, mas que certamente não era a chuva forte que desabou na cidade e muito menos a vitória do histórico e renitente perdedor.
Esperavam todos a hora de representar a farsa, até que começou a briga dos dois. Briga feia que ninguém ousou ou quis apartar. Sangue e dois bichos na arena. A assistência encantada. Rugiam os dois. Aplausos. Assobios. Punhos cerrados. Roupas rasgadas. O público satisfeito com a barbárie, não fosse a ausência de garras afiadas e presas fortes, até que ao palco subiram outros homens que, saudados pelos restantes, amarraram os dois peito a peito e na mão de cada um, uma faca. As facas são armas de quem dispensa portador, que homens, homens mesmo, não se escondem atrás de revólveres, portam, eles próprios, a morte nas mãos, sentindo o corpo, o peso, o gosto e a resistência do adversário.
E assim, os dois mataram-se, amarrados como siameses, a facadas. Mataram-se perante as palmas emocionadas de todos que foram ver e participar do espetáculo. Ao final, cada homem pegou seu chapéu e batendo o pó das casacas deixaram o cenário para trás. Todos os bichos da noite se calaram, exceto os gatos. Também a lua silenciou, escondida entre nuvens do fim do mundo. Na manhã seguinte, a lona não estava mais lá.

por Micheliny Verunschk

CLAROSCURO

O sangue baixava pelo morro e os anjos a procuravam, mas os cálices eram de vento e ao fim enchia os sapatos.
— Federico García Lorca


A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.
— Mia Couto, do romance Terra Sonâmbula

Toda a noite combato um anjo - na sombra de um exército estéril - poucas lágrimas, poucas palavras. Nos olhos uma dança coral com secretos demônios. A fragilidade humana. O canto de sangue caindo fora do tempo. As horas, entulhos do tempo rodeado de serpentes.
Na caverna de uma música perdida - minha boca se encontrava com as notas cortadas de toda poesia andaluza - corpos de pele exaltada nos mistérios que torturam o vento. São olhos, lábios que presidem os espelhos, vivem nas águas do silêncio.
Nas portas do pátio de sua alma - com golpes de ira - dançaremos com Cronos. A boca guiará seus passos ao naufrágio. Boca de preces e bênçãos, e na minha cintura o fogo dos deuses exilados. Oh senhor, e em mim só cresce o deserto a que me condenaste!
Sou o corpo do menino que desafia o sol e entra no escuro bosque com as ardidas naves do verbo proferido pelo desejo do outro que fui. Sou o vôo dos anjos sem palavras, e que agora cantam a canção do esvaziamento. Na pálida dança (o único vigia, a última testemunha do inferno), a mão a guiar esta sombra que a morte não presencia. As aves vão migrar noutro coração e as flores são as aves que agora me abandonam – os crucifixos dos meus olhos. Passo de dança que não atinge o presente! Serei eu, um espectro? Ou a grande voz do deserto que cresce?


A TRAVESSIA DOS ESPELHOS
Corre na beira do abismo. Na sombra do sol. Mergulha em direção a um punhal. É perfurado. O perfume selvagem escorre pelas mãos (uma de cada cor). Elas abrem um pouco mais o coração. A sombra entra, e doze pássaros saem do peito. Uma melodia no deserto. Envolvo-o. Joplin bebe o líquido vermelho das palavras. A voz move-se pouco a pouco: no peito, na sombra, no punhal. Os quatros ventos alimentam a melodia. Atravessam os espelhos. Seus olhos. Duas línguas buscam o seu dorso. Descem por suas pernas. Tocam o abismo, e voltam. Nas chamas do espelho: o corpo – pétalas, suor – o jardim asteca: canta. Dentes afiados. O grito na doçura dos pesadelos. O ritmo das janelas, de todas as janelas submersas no relógio. Duas línguas; olhando uma para outra. O sangue da noite. A dança da noite e seu suave barco. Nas pálpebras a verdade dos deuses, e os doze pássaros no ventre. O deserto caminha. Joplin se espreguiça nos seus braços. Desaparece no calendário. A tempestade chega. Meus olham dançam. “Summertime, time, time, / Child, the living's easy. / Fish are jumping out” Summertime - Janis Joplin


QUANDO O VERDE DOS TEUS OLHOS
A estiagem prolongou-se levando o brinquedo preferido. O Mandacaru alimenta e fere os olhos verdes da inocente infância. Lágrimas secas rolam de semblantes amarelos. A esperança é uma nuvem d’água, mas essa migrou para um povoado distante.
O alazão voador está aprisionado no solo ressequido, seu olhar pede um pouco de carinho - não consigo mais sonhar.
Meus amigos brincam de esconde-esconde, uns na jardineira engolidora de pais e, enquanto aos outros, a fome fechou os olhos.
Zezinho e Antônio são companheiros de caminhada para a escola – e esta é nossa única sombra de um futuro melhor.
Na volta da aula uma momentânea alegria me acalma. Perco-me propositadamente de meus colegas e sigo Ana: flor que nunca vi, a estranha e mais bela nestes sertões. Seu perfume é só meu. Para minha sorte, eles a ignoram.
Nossa caminhada é prazerosa, embora o tempo imponha seu curso impiedosamente: sol, mugido de gado extinto.
Ana me carrega e seu sorriso brilha como uma manhã nunca vista. Promete desvendar-me seu segredo, assim que chegarmos em sua morada. O caminho parece diferente, as aventuras ficaram para trás.
Debaixo de uma grande árvore, com galhos de folhas mortas, ela revela de forma enigmática:
– Voltarás a sonhar. O teu caminho será verde. O céu te dará asas. Amanhã não voltarei.
Naquele dia de setembro, como em muitos outros dias do ano, Zezinho e Antônio foram à minha casa. A notícia dada por minha mãe não os assustou, fazia parte do cotidiano da região:
– Ele só esperou a primavera, parece estar sonhando.
O silêncio apoderou-se de meus amigos e assim se retiraram de casa.
De volta à peregrinação, Antônio acrescentou:
– Aquela flor que ele segurava, eu nunca vi aqui no sertão.


EPISÓDIO
Metal impuro, medalhão da sorte sem poderes ocultos, moeda cunhada nos tempos do sofrimento. Estas foram as primeiras hipóteses para descrever o objeto que estava cravado entre os dedos daquele incógnito ser na angustiada mesa de necropsia.
Ele fora encontrado no cume da montanha [ironicamente denominada Paraíso]. Ainda não atingira a idade do lobo.
Concluídos os primeiros exames, tentava eu montar o quebra-cabeça do devorador de minha tranqüilidade. Não saí da primeira peça. Nenhum indício de sua morte, os órgãos internos estavam perfeitos, o que era incomum para alguém de sua idade. Uma luz artificial refletiu-se em meu rosto e o Senhor das Dúvidas percorreu-me o corpo. A moeda abandonou seu hospedeiro, furtando-me a concentração nas análises.
A ampulheta é invertida. As runas traçam diferente destino. O vento noturno conduz a uma estranha sensação; estou na montanha Paraíso. Solitário. Vestígios de sanidade. Abruptamente o cenário é invadido por outra criatura, mas ela não sente minha presença. Senta-se em posição de lótus, parece admirada com o horizonte. Num movimento angelical, ela retira um objeto circular de suas entranhas. Olha-o e seu semblante transforma-se. Grita e atira furiosamente o objeto montanha abaixo. Vira-se para mim: olhar vago, um quê de decepção. Chove. A chuva cobre seu corpo num lamento. Uma gota rubra remete-me à cena inicial: [Metal impuro - Forja mestra de almas, invento impondo sua cadência, arquitetando o cotidiano, monarca das ilusões. Sou servo banhando-me em espelhos de lágrimas]. Permitiram-me o sol, mas há dias não sinto sua luz.


por José Geraldo Neres

NEVE EM SÃO PAULO

Em 25 de junho de 1918, no quarto dia de inverno, um nevoeiro cobriu de branco as ruas de São Paulo, a 3 graus abaixo de zero. O orvalho congelado no começo da manhã foi a primeira e única neve que a cidade já teve.
Num quartel em Santana, forrei os meus coturnos com folhas do jornal de ontem, que tinha lido e relido durante a noite, à luz de vela, para não morrer de tédio. A cera tinha virado estalactite.
Agora, da guarita, batendo os pés sem sair do lugar, eu assistia ao espetáculo, no retângulo que tinha a largura da minha vista: uma guerra de bolas de neve!
Por sorte, eu ainda estava vivo.


por Cadão Volpato

O PINTOR E SUA SOBRINHA

Havia um mundo na cozinha. Outro na sala, logo ali vizinha. A janela enorme dava para o mar e à noite ventava muito. Diante desta janela e deste mar ele pintava sonhando com Rimini ou Taormina, imaginando que a igreja mais azul da serra da Ibiapaba não seria tão azul quanto a cor que agora estava na sua tela.
No mundo da cozinha, imenso pavilhão de azulejos claros, a sobrinha reinava todas as tardes entre panelas minúsculas e bonecas despenteadas que babavam nos vestidinhos. Às vezes quando ele se cansava de olhar suas telas ou o mar pela janela encostava-se no umbral da porta da cozinha e ficava olhando, escondido, a sobrinha deitada nos azulejos. A cena, anos depois, pouco antes dele morrer, serviu de inspiração para inúmeras pinturas.
Agora, ali diante da sobrinha que não o via, ele não sabia que ia morrer.
Não sabia que ela um dia também gostaria dos filmes de Fellini ou da voz de Nina Simone. A sobrinha era apenas uma criança entretida com a bunda pra cima. Tudo o mais era o futuro. Memória de fatos que ainda não aconteceram. O mundo daquela cozinha cheirava vagamente a orégano. Limpeza, higiene, panelas arrumadas, facas dispostas em simetria. Território de sua irmã. A mãe da sobrinha.
Depois da imersão no mundo da cozinha ele voltava para o mundo da sala com novo ânimo . Sua tela nova era um acontecimento. Mesmo as expressões deformadas que criava para seus personagens aflitos ganhavam lirismo, poesia , sopro novo. Era culpa da sobrinha. A menina de olhos de jabuticaba. Olhos que veriam muito depois outros tantos quadros e expressões. Mas olhos que jamais se esqueceriam das expressões e telas de seu tio.
Quando ele dançava, ria ... balançava a cabeça e todo o vento frio que entrava pela janela esquentava. Com o tio ela poderia dizer que tinha entendido pela primeira vez o que era o amor. Amor que dá e não cobra. Amor que não paga fatura , não funga porque não chora. Amor que não explora. Amor de pegar na mão e sentir-se a mais segura das meninas.
Estas tardes em que ele pintava e ela deitada sonhava com o futuro ficaram tão remotas que chegam a doer na sua lembrança de viva e na nostalgia que ele guarda no mundo dos mortos. Ele ainda tem vontade de pegar na mão da menina. E ela o procura quando vê suas próprias unhas roídas pela ansiedade que os descaminhos do amor sempre provocam.
Ela o vê de dia às vezes. Não como uma assombração noturna . Mas como uma aparição solar, tão cheia da luz azul que ele amava, tão saudosa das histórias que ele contava. Ele gosta de aparecer na praia , torso nu , exibindo um sorriso e um corpo belo. Cheio da vida que não tem. Lhe sorri cúmplice, chega a insinuar com seu lindo rosto de morto que ela deve fumar menos e aprender a amar mais. Diz com os olhos que o difícil é entender o amor . Um amor que mesmo em vida distante ele ainda busca. Mas ela ainda não entende apesar de ter morrido várias vezes.
Deitada na grama sobre uma toalha xadrez de piquenique ela olhou o céu ardido de azul outro dia e achou que estava começando a entender. E então veio aquela paz. Exígua, mas paz. Sensação que não durou até a noite cair por completo mas que foi forte o suficiente para ele entender que amor é ato de sacerdotes. Que pode não requerer castidade quando o objeto do amor está distante . Mas requer sinceridade. No entanto a castidade do amor é sagrada quando ela é entregue apenas à pessoa amada. Este foi o recado do tio. Se é que um recado destes pode chegar com tamanha clareza de lá do outro lado do rio.
O que procura a sobrinha ? a terceira margem ? a derradeira viagem ? algo parecido – sublime – com o amor que sentia pelo tio ? onde está o fim do vazio ? talvez nas belas artes, no mesmo remoto vento nordeste que chega com o mar, nas ruas cheias de Lisboa , no dedo de Deus que aponta o céu em Fernando de Noronha.
A sobrinha deitada sobre a toalha , a fruteira na cozinha da infância, o copo de uísque derramado, as gaivotas mancas, os olhos vermelhos de choro, as ruínas romanas, um fim de semana perdido. Tudo isso é tela. Paisagens pintadas na memória. Quais respingos ficam quando a memória se esvai ? um beijo que cai , um abajur que não acendeu, o grande amor que não aconteceu, sapinhos que coaxam do lado de fora de um chalé ?
Ah, meu tio. Tudo isso é pintura. Gravura, aquarela, mau riso e mau choro sobre círios imperfeitos. Óleo sobre tela. Mãos peludas segurando um pincel. Uma dor profunda e uma alegria divina. Um porre de vinho, manchas no lençol, um anel grande, amarelo e robusto... um susto meu tio, um susto.


por Ricardo Soares