quinta-feira, 22 de março de 2007

INSÔNIA

Eu devia ter dito alguma coisa, pensava Antocha Tchekonté, a revirar-se na cama. A consciência, dilatada pelo silêncio e pelo calor, cobrava-lhe, tardiamente, uma atitude. O Diretor Administrativo, diante de vários membros do Gabinete, na reunião da tarde, que se estendera por várias horas, apresentara documentos incômodos, indícios de incúria, de má gestão. "Exijo uma Sindicância", disse, sem erguer a voz, e fitou o amigo Antocha, como que a buscar apoio para aquele procedimento. "Para proteger o Ordenador de Despesas", continuou. Sem encontrar posição na cama, Tchekonté levantou-se, foi à janela e fumou um cigarro no escuro. Do apartamento, podia ver a avenida iluminada, por onde trafegavam escassos automóveis. Recordou-se do Secretário, a pontificar, exaltado, na cabeceira da mesa, sobre o perigo da "pequena política, que nos faz perder de vista o Projeto". Ah, pensou Antocha, se o Projeto fosse como a avenida, linear, balizado por lâmpadas potentes, asfaltado.
Era um técnico competente, o funcionário de terceiro escalão. Aposentado pelo Tribunal de Contas, acumulava ao salário os rendimentos do cargo de confiança, desde que seu partido assumira o poder. Merecia o que ganhava. Zeloso e pontual, jamais esquivava-se ao trabalho. Conhecia bem a legislação federal, a constituição estadual e o estatuto do servidor público. Com freqüência, auxiliava o próprio Departamento Jurídico, cujos advogados, em início de carreira, perdiam-se ainda nos labirintos burocráticos. No dia em que o Secretário o convocou "a fazer parte do Gabinete" – seria uma espécie de assessor político –, Antocha refugiou-se no banheiro e enxugou as lágrimas. Enfim, o reconhecimento. Pena que o pai, o velho sapateiro comunista do bairro, não estivesse ali, para vê-lo. Morrera antes, nos porões da ditadura. Nas primeiras reuniões, o novo membro do Conselho Político, Antocha Tchekonté, entusiasmou-se. Houve um dia em que arriscou até um pequeno discurso. Ao retornar do almoço, foi chamado à sala do Chefe de Gabinete. Que se contivesse, recomendava o superior. O Secretário não gostava de gente muito saliente. Desde então, Antocha encolhia-se, afundava na cadeira, distraía-se com uma revista ou um jornal durante as intermináveis discussões, a contemplar os pássaros sobre os telhados da vizinhança. Tudo não passava, mesmo, de um jogo, a vontade férrea do Secretário sempre se impunha, e ele não estava disposto a participar da encenação, seu talento para o teatro esgotara-se no final da adolescência. Contra a força, não há argumento, passou a sentenciar Antocha pelos corredores aos mais jovens, aos recém-chegados. Havia sempre a quem ensinar, que a ciranda de novos assessores não cessava nunca. Assim, loquaz antes e depois das reuniões, no transcorrer delas fechava-se num mutismo mineral. Desta forma, sobreviveu à movimentação frenética no quadro funcional da Secretaria. Dos velhos colegas, restava ainda o Diretor Administrativo, com quem compartilhava angústias partidárias e preocupações teóricas. Só até amanhã, recordou-se o funcionário. No dia seguinte, o Diário Oficial estamparia a demissão do Diretor Administrativo.
Antocha arrastou-se ao banheiro, urinou, deu a descarga, sempre no escuro. Se acendesse a luz, iria sentir-se obrigado a olhar para o espelho. E não queria ver a própria face. Bebeu água, molhou o rosto e os cabelos que ainda lhe restavam. Por um segundo, a aflição cessou. Teve, nesse momento, a ilusão de que seria capaz de adormecer, bastava tornar a deitar-se. "Eu quis falar", disse, para si mesmo, com a voz grave, empostada. "Eu quis falar, pai", repetiu. O funcionário Antocha Tchekonté era honesto consigo mesmo, sempre fora. Sim, ele quisera falar, revoltar-se, fazer valer a sua condição de membro do partido, de contribuinte assíduo e generoso, mas algo, não sabia se a desilusão, o medo ou a vergonha, o fazia calar-se. Silenciou, e agora o silêncio reverberava dentro dele, crescia, quase o sufocava.
Retornou ao quarto, sentou-se na cama, cobriu as orelhas com as mãos espalmadas. As palavras, dos outros, por que a sua não fora ouvida, e ele devia ter-se feito ouvir, retumbavam nos seus ouvidos.
"Fetichista da lei", gritava o Secretário ao Diretor Administrativo.
"Na sua opinião, o ordenamento jurídico é um entrave burocrático", retrucava o subordinado.
"Reizinho da ética", desabafava a Autoridade.
"Peço exoneração", dizia o amigo de Antocha a recolher os papéis sobre a mesa, um a um, as faturas, as notas de empenho, as notas fiscais, com a mesma paciência de sempre e o mesmo sorriso nos lábios.
E o funcionário Antocha Tchekonté lá, em silêncio, sentindo-se humilhado, quase com ânsia de vômito. Fora daqueles militantes que tinham sonhado com uma administração decente, dedicara-se ao partido com ardor, engrossara comícios e plenárias, sacrificara os horários de almoço para panfleteações e bandeiraços nas esquinas da cidade, e não conseguia falar, não conseguia solidarizar-se com o companheiro que defendia os valores que todos diziam defender, não conseguia condenar as práticas que tornavam o seu partido em tudo semelhante aos outros partidos.
Antocha Tchekonté não suportou mais permanecer no escuro. Acendeu a lâmpada de cabeceira, tateou atrás dos óculos. Tão logo as pupilas acostumaram-se à nova situação, apanhou o livro que o Secretário lhe emprestara, e retomou a leitura. Percebeu, então, que as lentes estavam fracas.
Amanhã, pensou, vou ao oculista.

por CHARLES KIEFER

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