quinta-feira, 22 de março de 2007

O MÁGICO DO AZAR

Um dia Carlos imaginou: se fosse mágico, mágico mesmo, ou melhor, um santo, capaz de - não prestidigitações - de milagres. Sim, milagres. Porque no reino do real o que poderia se transformar mesmo seria somente pela ação do milagre, do fenômeno, nunca do truque.
Mas só há truques em disponibilidade, só enganações, só respostas para um mistério que, uma vez vindo à tona, tornam-se, essas respostas, num inevitável esvaziamento desses mistérios. E Carlos então pensou: santo, sim, mas não santo. Isto é, com o poder miraculoso dos santos mas a trajetória dos mágicos. Os santos são graves, dramáticos, bons, curam, salvam, perdoam. Os mágicos são cínicos, cômicos, maus, flertam com o perigo, ameaçam, condenam. Depois de um santo, nasce a fé mais fervorosa no maior dos céticos. Depois de um mágico, cresce o riso ateu. Um mágico nunca acredita em Deus.
Carlos imaginou-se um mágico santo, ou seja, com a malícia dos mágicos e o poder dos santos. Capaz de, santo, fazer brotar o impensável; capaz de, mágico, criar confusão. O sonho de Carlos era real, ele não queria facilidades, queria pagar o preço necessário. E para essa combinação, o preço, alto, era este: faria mágicas poderosíssimas, mágicas mesmo, jamais truques, mas todas para o mal.
Pegaria um ovo de plástico, cortaria com uma faca dentada, e de dentro sairia uma pomba morta.
Pegaria uma mulher morta, poria num caixote com uma incisão na metade. Nessa incisão, Carlos enfiaria um serrote. Gritos e sangue anunciariam a ressurreição: a mulher voltava à vida, mas perdia os membros inferiores. Virava, rediviva, um toco humano, triste de se ver, pela dificuldade de locomoção, pela perda da beleza, e pelo estigma de ser alguém que já fora defunto.
Um homem, cego de um olho, postar-se-ia diante do mágico Carlos. Este tocaria com a ponta dos dedos no olho doente do homem; em seguida, com a mesma ponta de dedo, tocaria o olho bom. A um sinal seu, o olho bom perderia a visão imediatamente, os protestos de desespero do homem vencendo o ruído da admiração tensa e abafada da platéia.
E ainda outra mágica. Carlos mostra um copo d'água, água cristalina, límpida, pura, desejável. Passa um lenço em volta do copo, cobre o copo, e logo a seguir dá um puxão no lenço e o copo surge, vermelho. Chama uma assistente que, horas antes de passar mal, bebe o líquido e confirma: é sangue, sangue velho, sangue contaminado.
A fama de Carlos, naturalmente, é controversa. Temem-no pelo gênio e também pelo risco que sua mágica representa. Gênio não, gênios são humanos, fazem parte do mesmo triste cortejo de todos nós. Carlos é mais, um milagre, e mesmo as vítimas de suas mágicas demoníacas não contestam a força de seu poder. Ele, é verdade, se comove com o sacrifício imposto a essa gente: mas é necessário, são provas de que o que ele faz não é prestidigitação barata, não se resume a mero truque. Quem é tocado por sua magia sucumbe diante de uma condenação que talvez tenha, no mais profundo de sua missão, um papel purificador.
O ilusionismo não passa de uma ilusão. Ou aceitamos a realidade real, pequena, previsível, óbvia sempre, ou passamos ao outro lado, o oposto de tudo o que conhecemos. Carlos atravessou até chegar nessa região remota. Os que o desafiarem serão transformados, e depois dessa metamorfose já não poderão salvar-se.

por Paulo Bentancur

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