sexta-feira, 30 de março de 2007

DEZ CONTOS SECOS

IR

O automóvel passou. Como o tempo. Não posso vê-lo mais, já não me lembro. Só ficou um pouco do tom pálido, algo da sensação de passagem. A outro lugar. Só ir, a cada centímetro das horas, só mover-me, só agora, automaticamente. Gesto sem fim, o fim à espera. Não há como chegar ao destino, cumpri-lo, por mais que o tempo ande, por mais que eu passe ao largo das pedras. Ou as chute. Uma delas fará o passo seguinte parar de vir. Só vejo a ida, não me lembro onde será o instante, instante do andado: o que estará escrito.


ASSIM

Foi assim que aconteceu. Não adianta mais. Já era. Mas era assim que, no fundo, queria. Um e outro queríamos. Foi quando o fado trouxe-nos o que não pedimos, consciente de nossa oculta vontade. Talvez se atendam os não-pedidos, quando são silêncios nascidos do desejo, fatídico.


SEU

Tome. É seu. Você o fez, é seu por direito. Não me quero de volta.
Fico logo ali à esquerda.


FIO

Creio. Quero crer. Preciso crer. Não creio em outra saída senão crer: sou, não por um mero pensamento, ente abstrato que ecoa no vago, volátil como uma bolha, no limite da inexistência; nem pela fala alada, que soa, alça vôo e some. Enquanto grafo, este rastro negro conduz o fio da meada que me tece: invólucro abarcando o oco, velha bola de ar.


COR

Ficara só o amarelo. Quase-cena distante, apenas a memória clara. Primeira vez, primeira luz, primeira sensação, a primeira cor. Viva na idéia: amar. Diferente de todas que existem, um elo comigo mesmo, ainda. Verso do mundo, diferente de todas que se vêem todos os dias. Estas se apagam com a idade, fundem-se na diversidade infinda.


ACONTECE

Pena. Mas não adianta chorar o choro derramado. Não foi um acidente, e os não-acidentes acontecem. É o que seria, e pronto: apenas o resultado de uma vida desprovida de prodígios.


NO FUNDO

Enfim tudo está claro. Então é assim. Todos sabiam, menos eu. Não, no fundo eu sabia.
Já não sei mais.


MORTE NATURAL

Aí, então, morreu o Assunto. Morreu por si, sem que houvesse qualquer intenção de matá-lo. Morreu de velhice, por secar-se, definhar, exaurir-se. Em seu lugar nasceram Silêncio e Silêncio, gêmeos, reencarnações do extinto, com chances díspares ofertadas pelo mundo.


FEIJÃO COM ARROZ

Um, dois. Dois gemidos. Um após outro. Desencontrados e últimos, igualados a zero.


NADA

Foi-se, folha levada pelo vento. Era tempo. Passou como quem não veio, uma imagem vaga sem freio, um vulto que a pupila não fixa, liso como o rio, peixe a favor da corrente.

Foi-se sem atrito, sem deixar vestígio, nem o vento frio. Passou a folha, passou o vento, o desvario. Era o momento, a falha, é o momento vazio.


*
Marcelo Tápia

AO MUNDO DAS MÁSCARAS

Ficar muda, enterrada sob lençóis. Múmia seca no sarcófago como lagarta encapsulada no casulo. Queria não descerrassem as cortinas, ainda não! Não abrissem. Olhos com remela sob pálpebras isolados do mundo solar. Que o jato de luz não jorre, janela, não abra a tumba. Dentro, musgo nas pálpebras, larvas entre dedos, mastigando unhas, pêlos, ossos. Fique, fique, fique, murmuram, enlouquecidas, agarrando pés, mãos. A luta, acordar, a luta, espada do cavaleiro solitário, liames decepados entrelaçados a troncos crescidos em desespero na selva, bromélias, bananeiras, figueiras travando o espetáculo luminoso. Lá fora, escapamentos, buzinas, apitos, engates, blasfêmias. Cavaleiro sem cavalo guerreia contra cipós selvagens, barbas de bode. A espada abre caminho, porta mágica: o despertador zune.
Deslizou o sabonete no corpo. Bom sentir o corpo. Avó Michiko não sentia mais. Ameixa chupada entre pétalas de crisântemos e sempre-vivas, máscara no jardim. Tão rápido. De manhã: sabe que está muito mal? Vôo para São Paulo, à noite, último desejo: Posso cantar? Claro. Primeiros acordes duma canção japonesa, dois suspiros, depois morreu. Lembrava a máscara, camélia desmaiada.
A água escorreu pelo corpo, sensação de vida. Mistério, morrer. Não tinha tempo pra filosofia, marcou encontro com uma amiga que vinha de Belo Horizonte. Devia ter cancelado, enfim um dia como outro. A vida continua.
Amigas há tempos, moraram juntas. Grete casou, mudou pra Minas. Durante anos mantiveram contato por telefone, carta. O fim das afinidades e a falta de convivência regular fez o relacionamento murchar até reduzir-se a um cartão no fim do ano. Surpresa quando ligou dizendo que vinha passar uns dias em Curitiba, queria encontrá-la.
Pensou em levar uma lembrança. Ela gostava de coisas de brechó. Passaria na loja do China. Sempre passava ali a caminho do trabalho. O chinês era um velho imigrado de Hong Kong nos anos 60. No brechó tinha tudo: gramofone, relógio de corrente, jaquetas e medalhas, bonecas de biscuit, louça em miniatura, castiçais de prata. Tudo cheirando naftalina.
Gostou da boneca de biscuit. Ponta do nariz lascada, mas o cabelo de seda natural e o vestido de organza em ordem. Conversou com China, que, como de hábito, queria empurrar mais trastes. Ao sair, sentiu um botoque na cabeça. Ai! A carranca despencou do teto. Não quebrou nada, né?, perguntou o chinês, referindo-se à carranca. Ajudou-a a levantar-se sorrindo. Olhou a carranca de expressão furiosa. A bocarra com dentes cerrados. Espanta maus espíritos, explicou o chinês.
A confusão a fez atrasar. Grete esperava, ansiosa, robusta e alegre.Abraçaram-se, beijaram-se, falaram. Conversaram sobre as novidades, mas havia um entrave. Olhar de soslaio, pernas descruzando impacientes, mãos gesticulando. O que a trazia de volta? Contou que mãe não estava bem de saúde. Não sabe porquê, não comentou a morte da avó.
Na despedida, o presente. Esqueceu no banco de trás do carro. Grete asurpreendeu com um pacote. Abra, vai gostar. Reconheceu o papel depresente: a carranca. Confusa um minuto, olhou a amiga, riu. Sabia que ia gostar. Despediram-se.
Ao voltar para o carro jogou no banco de passageiro a máscara feia. Por que ela me deu isto ?, pensou, irritada. No banco de trás a boneca sorria, sem graça.
*
Marília Kubota

UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de espelhos, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Nie) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado do bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:
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Luci Collin

A NINFA ECO

Eu era ninfa infa do séquito quito da deusa eusa Juno uno. E apreciava ava contar tar a ela ela longas ongas histórias órias. Mas um dia ia, irada ada com as infidelidades ades de Júpiter úpiter, a deusa eusa, não tendo endo a quem culpar ar, julgou ou que eu eu o protegia ia, divertindo indo indo a ela ela, que se descuidava ava, enquanto anto o deus eus do Olimpo impo a traía ía. Pensou ou que ele ele mantinha inha um conluio uio comigo igo. Malvada ada, sequer er procurou curou averiguar ar se era real al o que em juízo ízo ela imaginava ava. Acabou ou com minha inha alegria ia e castigou-me ou-me com uma maldição ão. Condenou-me ou-me a falar ar apenas enas quando ando me interrogassem assem e ainda inda assim sim respondendo endo só com as últimas timas sílabas labas a mim dirigidas idas. Matou-me ou-me o gosto pelos elos bosques osques cerrados ados, onde onde vaguei ei durante ante anos anos, infeliz iz, ouvindo indo apenas enas a doce oce voz oz das melíades líades que embalavam avam crianças anças abandonadas nadas furtivamente ente nos ramos amos das árvores vores. Uma tarde arde a felicidade ade renasceu eu em mim im, quando ando vi o belo elo Narciso iso passeando ando pelo elo desfiladeiro eiro, descabelando ando a copa opa dos carvalhos alhos, que se moviam iam para ara vê-lo ê-lo caminhar nhar displicente ente. Apaixonei-me ei-me por seus eus cabelos elos de sol ol encaracolados lados e seu eu semblante ante de perfeição ão inigualável ável. Segui-o i-o por muitas uitas manhãs nhãs, ferida ida de amor or, mas sem a ele ele me declarar ar. Num um bosque osque nas as adjacências ências de Téspias pias, ele ele costumava ava se mirar ar por horas oras às margens gens de uma fonte onte onte. Aproximei-me ei-me para ara me me declarar clarar, mas eu eu nada ada podia ia dizer er senão ão o que ele ele me dizia ia. Recordei ei minha inha desgraça aça; eu jamais mais poderia ia confessar ar meu amor or, porque que as minhas inhas palavras avras seriam iam sempre empre as que ele ele enunciasse asse. Ao me flagrar ar contemplando-o ando-o, virou-se ou-se furioso oso me perguntando ando quem em eu eu era era. E eu lhe respondi ondi quem em eu eu era era. Rindo indo, o que o tornava ava mais belo elo, os cachos achos da cabeleira eira fulva ulva luzindo indo, Narciso iso zombou ou com desdém ém que me queimou mou a alma alma. Nada ada me consolaria ia senão não me refugiar iar no nevoeiro eiro das trevas evas, nos antros tros, nos rochedos edos, nas pedras edras das cavernas ernas e cumprir ir meu fado ado amargo argo, minha miserável ável sina ina de repetir ir. Justo usto eu eu que adorava ava contar tar histórias órias pelo elo puro uro prazer de ser er ouvida ida.
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João Carrascoza