sexta-feira, 30 de março de 2007

DEZ CONTOS SECOS

IR

O automóvel passou. Como o tempo. Não posso vê-lo mais, já não me lembro. Só ficou um pouco do tom pálido, algo da sensação de passagem. A outro lugar. Só ir, a cada centímetro das horas, só mover-me, só agora, automaticamente. Gesto sem fim, o fim à espera. Não há como chegar ao destino, cumpri-lo, por mais que o tempo ande, por mais que eu passe ao largo das pedras. Ou as chute. Uma delas fará o passo seguinte parar de vir. Só vejo a ida, não me lembro onde será o instante, instante do andado: o que estará escrito.


ASSIM

Foi assim que aconteceu. Não adianta mais. Já era. Mas era assim que, no fundo, queria. Um e outro queríamos. Foi quando o fado trouxe-nos o que não pedimos, consciente de nossa oculta vontade. Talvez se atendam os não-pedidos, quando são silêncios nascidos do desejo, fatídico.


SEU

Tome. É seu. Você o fez, é seu por direito. Não me quero de volta.
Fico logo ali à esquerda.


FIO

Creio. Quero crer. Preciso crer. Não creio em outra saída senão crer: sou, não por um mero pensamento, ente abstrato que ecoa no vago, volátil como uma bolha, no limite da inexistência; nem pela fala alada, que soa, alça vôo e some. Enquanto grafo, este rastro negro conduz o fio da meada que me tece: invólucro abarcando o oco, velha bola de ar.


COR

Ficara só o amarelo. Quase-cena distante, apenas a memória clara. Primeira vez, primeira luz, primeira sensação, a primeira cor. Viva na idéia: amar. Diferente de todas que existem, um elo comigo mesmo, ainda. Verso do mundo, diferente de todas que se vêem todos os dias. Estas se apagam com a idade, fundem-se na diversidade infinda.


ACONTECE

Pena. Mas não adianta chorar o choro derramado. Não foi um acidente, e os não-acidentes acontecem. É o que seria, e pronto: apenas o resultado de uma vida desprovida de prodígios.


NO FUNDO

Enfim tudo está claro. Então é assim. Todos sabiam, menos eu. Não, no fundo eu sabia.
Já não sei mais.


MORTE NATURAL

Aí, então, morreu o Assunto. Morreu por si, sem que houvesse qualquer intenção de matá-lo. Morreu de velhice, por secar-se, definhar, exaurir-se. Em seu lugar nasceram Silêncio e Silêncio, gêmeos, reencarnações do extinto, com chances díspares ofertadas pelo mundo.


FEIJÃO COM ARROZ

Um, dois. Dois gemidos. Um após outro. Desencontrados e últimos, igualados a zero.


NADA

Foi-se, folha levada pelo vento. Era tempo. Passou como quem não veio, uma imagem vaga sem freio, um vulto que a pupila não fixa, liso como o rio, peixe a favor da corrente.

Foi-se sem atrito, sem deixar vestígio, nem o vento frio. Passou a folha, passou o vento, o desvario. Era o momento, a falha, é o momento vazio.


*
Marcelo Tápia

AO MUNDO DAS MÁSCARAS

Ficar muda, enterrada sob lençóis. Múmia seca no sarcófago como lagarta encapsulada no casulo. Queria não descerrassem as cortinas, ainda não! Não abrissem. Olhos com remela sob pálpebras isolados do mundo solar. Que o jato de luz não jorre, janela, não abra a tumba. Dentro, musgo nas pálpebras, larvas entre dedos, mastigando unhas, pêlos, ossos. Fique, fique, fique, murmuram, enlouquecidas, agarrando pés, mãos. A luta, acordar, a luta, espada do cavaleiro solitário, liames decepados entrelaçados a troncos crescidos em desespero na selva, bromélias, bananeiras, figueiras travando o espetáculo luminoso. Lá fora, escapamentos, buzinas, apitos, engates, blasfêmias. Cavaleiro sem cavalo guerreia contra cipós selvagens, barbas de bode. A espada abre caminho, porta mágica: o despertador zune.
Deslizou o sabonete no corpo. Bom sentir o corpo. Avó Michiko não sentia mais. Ameixa chupada entre pétalas de crisântemos e sempre-vivas, máscara no jardim. Tão rápido. De manhã: sabe que está muito mal? Vôo para São Paulo, à noite, último desejo: Posso cantar? Claro. Primeiros acordes duma canção japonesa, dois suspiros, depois morreu. Lembrava a máscara, camélia desmaiada.
A água escorreu pelo corpo, sensação de vida. Mistério, morrer. Não tinha tempo pra filosofia, marcou encontro com uma amiga que vinha de Belo Horizonte. Devia ter cancelado, enfim um dia como outro. A vida continua.
Amigas há tempos, moraram juntas. Grete casou, mudou pra Minas. Durante anos mantiveram contato por telefone, carta. O fim das afinidades e a falta de convivência regular fez o relacionamento murchar até reduzir-se a um cartão no fim do ano. Surpresa quando ligou dizendo que vinha passar uns dias em Curitiba, queria encontrá-la.
Pensou em levar uma lembrança. Ela gostava de coisas de brechó. Passaria na loja do China. Sempre passava ali a caminho do trabalho. O chinês era um velho imigrado de Hong Kong nos anos 60. No brechó tinha tudo: gramofone, relógio de corrente, jaquetas e medalhas, bonecas de biscuit, louça em miniatura, castiçais de prata. Tudo cheirando naftalina.
Gostou da boneca de biscuit. Ponta do nariz lascada, mas o cabelo de seda natural e o vestido de organza em ordem. Conversou com China, que, como de hábito, queria empurrar mais trastes. Ao sair, sentiu um botoque na cabeça. Ai! A carranca despencou do teto. Não quebrou nada, né?, perguntou o chinês, referindo-se à carranca. Ajudou-a a levantar-se sorrindo. Olhou a carranca de expressão furiosa. A bocarra com dentes cerrados. Espanta maus espíritos, explicou o chinês.
A confusão a fez atrasar. Grete esperava, ansiosa, robusta e alegre.Abraçaram-se, beijaram-se, falaram. Conversaram sobre as novidades, mas havia um entrave. Olhar de soslaio, pernas descruzando impacientes, mãos gesticulando. O que a trazia de volta? Contou que mãe não estava bem de saúde. Não sabe porquê, não comentou a morte da avó.
Na despedida, o presente. Esqueceu no banco de trás do carro. Grete asurpreendeu com um pacote. Abra, vai gostar. Reconheceu o papel depresente: a carranca. Confusa um minuto, olhou a amiga, riu. Sabia que ia gostar. Despediram-se.
Ao voltar para o carro jogou no banco de passageiro a máscara feia. Por que ela me deu isto ?, pensou, irritada. No banco de trás a boneca sorria, sem graça.
*
Marília Kubota

UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de espelhos, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Nie) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado do bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:
*
Luci Collin

A NINFA ECO

Eu era ninfa infa do séquito quito da deusa eusa Juno uno. E apreciava ava contar tar a ela ela longas ongas histórias órias. Mas um dia ia, irada ada com as infidelidades ades de Júpiter úpiter, a deusa eusa, não tendo endo a quem culpar ar, julgou ou que eu eu o protegia ia, divertindo indo indo a ela ela, que se descuidava ava, enquanto anto o deus eus do Olimpo impo a traía ía. Pensou ou que ele ele mantinha inha um conluio uio comigo igo. Malvada ada, sequer er procurou curou averiguar ar se era real al o que em juízo ízo ela imaginava ava. Acabou ou com minha inha alegria ia e castigou-me ou-me com uma maldição ão. Condenou-me ou-me a falar ar apenas enas quando ando me interrogassem assem e ainda inda assim sim respondendo endo só com as últimas timas sílabas labas a mim dirigidas idas. Matou-me ou-me o gosto pelos elos bosques osques cerrados ados, onde onde vaguei ei durante ante anos anos, infeliz iz, ouvindo indo apenas enas a doce oce voz oz das melíades líades que embalavam avam crianças anças abandonadas nadas furtivamente ente nos ramos amos das árvores vores. Uma tarde arde a felicidade ade renasceu eu em mim im, quando ando vi o belo elo Narciso iso passeando ando pelo elo desfiladeiro eiro, descabelando ando a copa opa dos carvalhos alhos, que se moviam iam para ara vê-lo ê-lo caminhar nhar displicente ente. Apaixonei-me ei-me por seus eus cabelos elos de sol ol encaracolados lados e seu eu semblante ante de perfeição ão inigualável ável. Segui-o i-o por muitas uitas manhãs nhãs, ferida ida de amor or, mas sem a ele ele me declarar ar. Num um bosque osque nas as adjacências ências de Téspias pias, ele ele costumava ava se mirar ar por horas oras às margens gens de uma fonte onte onte. Aproximei-me ei-me para ara me me declarar clarar, mas eu eu nada ada podia ia dizer er senão ão o que ele ele me dizia ia. Recordei ei minha inha desgraça aça; eu jamais mais poderia ia confessar ar meu amor or, porque que as minhas inhas palavras avras seriam iam sempre empre as que ele ele enunciasse asse. Ao me flagrar ar contemplando-o ando-o, virou-se ou-se furioso oso me perguntando ando quem em eu eu era era. E eu lhe respondi ondi quem em eu eu era era. Rindo indo, o que o tornava ava mais belo elo, os cachos achos da cabeleira eira fulva ulva luzindo indo, Narciso iso zombou ou com desdém ém que me queimou mou a alma alma. Nada ada me consolaria ia senão não me refugiar iar no nevoeiro eiro das trevas evas, nos antros tros, nos rochedos edos, nas pedras edras das cavernas ernas e cumprir ir meu fado ado amargo argo, minha miserável ável sina ina de repetir ir. Justo usto eu eu que adorava ava contar tar histórias órias pelo elo puro uro prazer de ser er ouvida ida.
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João Carrascoza

quinta-feira, 22 de março de 2007

SOBRADO DE LÚCIFER

Com um líquido que seria letal para qualquer ser humano, somente com isso, a moça se alimentava. Nunca ninguém conseguiu entender qual o fenômeno ou anomalia genética que a tornava tão resistente àquela misteriosa poção, criada e produzida por ela mesma. Uma mistura de acetona com ervas compradas de duvidosos vendedores itinerantes do centro mais sujo da cidade. A fórmula exata, nunca se soube. Talvez nem a própria inventora.
O fato é que ela resolveu viver apenas em casa, saindo só para comprar as ervas, e sempre dopada por seu alimento, que tinha efeito psicológico pelo menos cento e oitenta vezes mais forte do que o absinto ou qualquer bebida que ainda viesse a existir.
Ela não fazia nada. Não comia nada. Não gastava dinheiro com nada. Nem mesmo com roupas, pois tinha um vestido longo vermelho de lantejoulas, que jamais era lavado. Traje de puta mesmo, comprado num brechó do mesmo centro mais sujo da cidade. Sua mãe, dona Andrósia, senhora tão distinta e amorosa, aceitava a filha. Diferente das duas irmãs, que tratavam a moça como um animal indesejável, um sapo idoso no canto do jardim, embora invejassem sua liberdade. Afinal, ela jamais se preocuparia com empregos ou namorados.
Nunca se soube o motivo da decisão de adotar este bizarro estilo de vida. Não, nenhuma desilusão amorosa. Nenhum trauma psicológico ou neurológico, nenhum acidente. Parece que ela simplesmente começou a achar tudo normal demais e passou a ser assim. O cabelo era um espetáculo à parte. Um verdadeiro zoológico freak , um pequeno umbral. Dreadlocks involuntários foram aparecendo, já que água, os fios não viam nunca. Pelo meio dos rolos, foram se formando ninhos de bichos jamais antes vistos pelo ser humano. Criaturas simplesmente indescritíveis. Além do mofo. A mãe dizia, com uma mistura de reverência e medo: -Acho que aí moram até demônios. É o Castelo de Lúcifer-. Mas a filha contestou: -Se o Demônio tivesse casa não seria um castelo, mas um sobrado antigo, com um belo jardim de árvores secas e fogo, situado na rua mais pecadora do mundo.- Foi daí que surgiu seu nome definitivo e oficialmente aceito pelos hitoriadores: Sobrado de Lúcifer. E Sobrado, como uma bêbada daquelas lúcidas, que falam a perturbadora verdade, certamente era um transtorno. A última vez que dona Andrósia havia recebido visitas, Sobrado apareceu na sala, de repente, estranhíssima figura, mandando os convidados embora. Disse que simplesmente não agüentava mais aquela gente lá, gente de energia negativa e mentalidade ínfima. Desta vez, a mãe falou: -Ai, filhinha, que vergonha! -Puta, mas que merda! Vergonha devia ter você, de trazer esse povo menor aqui, eles me deixaram com bodão. Não gostei. E a mãe recolheu a louça e foi triste para a cozinha, concordando com a filha. As visitas saíram se benzendo e correram tanto com o carro que bateram feio num poste. Houve ferimentos, mas continuaram correndo mesmo assim, a pé. Um desespero. Só queriam sair de perto daquela casa. –Cruzes-, diziam sem parar. E parece que até hoje o casal só consegue repetir esta palavra: Cruzes.
Sobrado, que apesar de sincera tinha bom coração, ficou com pena da mãe. Não pelo que tinha feito, mas por aquela senhora tão generosa e boa sentir-se na obrigação de receber lixo humano em casa. -E nem elogiaram a comida dela-, pensou. Nunca se soube também como a fama de Sobrado começou a se espalhar pelo mundo. Houve boatos que um admirador secreto conseguiu espioná-la, tirando fotos, apurando informações e montou um site na internet. E assim, o impossível aconteceu. Surgiram dois pretendentes.
Um deles, Wolf era um alemão famoso no underground mundial por ter ficado dependurado pela pele, por vários ganchos, durante meses em Berlim, num lugar obscuro, mistura de bar, templo e clube sadomasoquista. Sua pele parecia uma lona de circo velha e flácida, seqüela do estranho emprego que tinha na Alemanha. Ele trabalhava nisso para se aproximar das esferas mais profundas, obscuras, sangüíneas do mundo visível e invisível. Para ele, Sobrado seria a mulher perfeita, aquela que trazia o umbral na cabeleira. O outro foi Fausto, um assassino que havia se especializado em construir ikebanas com órgãos e pedaços de corpos humanos. A polícia internacional sempre ficava impressionada com a delicadeza e o bom-gosto de seus arranjos, como também pela habilidade dele em não ser pego. Um artista especializou-se em fotografar estas obras, organizando exposições tidas pelos críticos mais implacáveis dos jornais do mundo todo como arte de altíssima qualidade. Isso transformou Fausto em dono de imensa fortuna. Wolf e Fausto chegaram à casa da moça coincidentemente juntos, para horror do bairro inteiro. Foi nesse momento que uma das irmãs morreu do coração, com apenas vinte e sete anos de idade. Como sempre, a única a aceitar foi dona Andrósia, comovida pela paixão dos dois rapazes. -Afinal, parecem pessoas respeitáveis, não duvido que sejam bons moços, gente de bem- disse ela para Sobrado, que começava a gostar da idéia da união. Sobrado casou-se com os dois, numa cerimônia simples no jardim da casa, decorada com rosas vermelhas, douradas e negras. Por uma infeliz coincidência, a outra irmã embarcava na ambulância do hospício neste mesmo momento. Foi uma pena que não pudesse compartilhar da alegria dos noivos e da noiva, que ainda comentou:
- Coitada, não comeu nenhum docinho... - Ficaram os quatro morando na casa.
Fausto fez lindíssimos trabalhos com os corpos de todos os inimigos da mãe de Sobrado.
-Nunca matei alguém que prestasse- dizia.
Ganhou mais dinheiro ainda. E Wolf parou de fazer seus shows para produzir bolos decorativos sob encomenda, já que com a noiva estava próximo das profundezas do ser, vivendo com a mulher mais selvagem que já existiu. Seus bolos ficaram famosos, cheios de flores, frufrus, anjinhos esculpidos em açúcar, flores de biscuit e toda sorte de adereços românticos. Afinal, clima de romance e conforto era o que não faltava naquele lar onde, de verdade, existia o amor.


por Greta Benitez

FILHINHO DE PEIXES

Vendo assim não tem quem diga.Menino como ele, calmo como ele, educado como ele fazer o que fez. Cadê sua sensibilidade à flor? Onde socou? Ele que sempre foi a própria flor.
Delicado e cheio de amor. Típico pisciano, romântico. Nunca fez maldade à mosca. Nunca assassinou uma formiga. Pobrezinho do passarinho, coitadinha da lagartixa.Nunca atirou a primeira pedra. Ou a última. Nunca se envolveu em briga, baixaria do tipo: assim, agora, eu não lembraria.

A pessoa mais amiga e mais compreensiva. Que Deus pôs na terra.Dos frutos bons que Deus pôs na terra, acredito. Lembro como se fosse agora, como se fosse hoje o seu nascimento. Dia 20 de
março, há 19 anos. A família reunida e o médico dizendo: é um menino bonito e grande. Cheio de saúde para todo o sempre. Para todo o sempre.Do signo de Peixes. Porra, nunca lembrávamos o ascendente. Alguém sabe o seu ascendente? O problema talvez tenha sido o seu ascendente. Por que não pensei nisso antes?O ascendente.Há quem diga que Peixes é o "Sanatório do Zodíaco". Vai ver que é isso. Que outra explicação há para o acontecido? Nesta madrugada, cena tão horripilante. Não eram dele aqueles olhos, não eram. Tem certeza que foi ele mesmo? Não houve engano? A polícia é sempre do contra, não respeita quem vive no mundo da lua. A polícia sempre acusa a primeira alma fraca que encontra, é isso. Não tem sentido.Logo ele que sempre estudou na melhor escola. No melhor de tudo. No melhor do melhor. Condições sempre teve de viajar pelo Brasil e pelo mundo. Fala fluentemente, fluentemente.

Tudo que é língua. How are you, mother? I love my mother.

Mammy.

Menino cheio de ternura, um capetinha azul. A coisa mais linda correndo pela casa, bagunçando os móveis, pedalando as plantas. Que maravilhoso futuro o aguardava. Nada parecido com esse futuro, agora. Que horas são essas? Que horas? Minha cabeça anda tonta. Tudo é um sonho, um sonho. Um pesadelo de mau gosto. Ele nunca foi um menino assim, bruto. Assim, desumano. Deselegante. Desamável, inculto. Muito pelo contrário: ouvia Beethoven, tocava piano. Nunca gostou de rock. Nunca pôs um cigarro na boca, bebida, droga de maconha. Sempre pedia à mesa suco de morango. E um canudo. Consumia um litro de água por dia. Cuidava da saúde. Sempre dizia: “O corpo é a casa do espírito. E a casa sempre precisa estar arrumada e limpa e protegida”. Bem protegida.Amigo e companheiro como ele não havia. Gostava também de poesia. Vivia recitando coisas pelo jardim. No computador ainda pisca um verso assim: “Eu nasci assim capim”. E eu achava aquele verso engraçado. Enfim. Dizia também que o Brasil era um país sem cultura. Sem cultura. Ele ajudava a cultura. Não entendia tanta gente no olho da rua. Ajudava a filantropia. Quantas vezes saiu para dar aula no subúrbio? Adorava os pobres. Pelos pobres era capaz de fazer tudo.
Tudo.Não quero pensar nisso. Os pobres estragaram o menino, quem sabe? Alguém pôs um mau caminho no seu caminho.
Não, não acredito. É impossível. Fazer o que ele fez, deve ter sido a conjugação dos planetas, o movimento da maré. Alguma nuvem mal que se aproximou do seu signo. A lua crescente, minguante. A força dos planetas, algum desastre no céu de março. Mercúrio e Plutão em quadratura. Não sei onde li isso. De repente, a gente vai lembrando de coisa muito maluca. O ascendente dele é Câncer.Lembrei: é Câncer.Ouço a chegada da viatura. Outros tiros pela casa. Outros tiros pela casa.O estardalhaço que a imprensa vai fazer do caso. O povo à rua querendoqueimá-lo vivo.Saiam já da minha porta. Da minha porta. Não deixarei que façam isso. É tudo mentira. Não existe sangue. Não estou morrendo, o mundo não está morrendo, ninguém está morrendo. Estamos todos bem. Amém.Venha e abrace sua mãe, hã, hein? Fique calmo, fique tranqüilo. Este inferno é só um inferno astral.
Meu filho.

por Marcelino Freire

UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de espelhos, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Nie) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado do bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:
por Luci Collin