terça-feira, 20 de março de 2007

O OLHAR

Quem me conhece bem sabe que eu tenho uma obsessão pelo olhar. E vivo dizendo que o olho é o caminho mais curto da alma para tudo que está aqui fora, no mundo vivido; mas nem sempre foi assim — houve um tempo em que ele significava o mesmo que o olfato, o gosto e outros sentidos vulgares.
E se hoje não consigo mais olhar alguém nos olhos, não é por fraqueza... essa covardia comum a qualquer indivíduo medroso, e sim uma espécie de medo que me consome desde a juventude.
Descobri o poder de um olhar no dia mais infeliz da minha vida. Explico: desde a mocidade eu planejava uma vingança contra um sujeito que bateu no rosto de meu pai, em meio a uma discussão besta, por causa de não sei que teima. Era uma tarde morta, triste — daquelas em que os únicos barulhos ouvidos eram os gritos de crianças, vindos com o vento de um bairro distante. Lembro como fosse hoje, no entanto já se passaram setenta anos desde aquela tarde.
Começaram conversando baixo, depois as vozes foram aumentando, até silenciarem com um tabefe seco, que meu pai engoliu fundo, baixou a vista, apanhou o chapéu do chão... e eu fui seguindo seus passos de longe (nunca o caminho de nossa casa fora tão longo): desde este dia nunca mais foi o mesmo, e até o último instante de sua vida ele jamais haveria de levantar a vista — morreu com os olhos baixos, como se fosse (desde aquela maldita tarde) indigno de olhar os outros nos olhos.
No dia de sua morte jurei para mim mesmo que o responsável por tudo aquilo pagaria com a vida pelo que fizera. Planejei durante muito tempo, teria de ser uma ocasião singular; não poderia acontecer rápido, exigir a uma ocasião especial. Levei quarenta anos estudando a situação, e por várias vezes estive lado a lado com ele, só eu o conhecendo; vezes houve em que trocamos algumas palavras; depois o perdi de vista por quase dez anos. Eu não tinha pressa, estava certo de que logo ele estaria em minhas mão, inevitavelmente.
Um dia eu soube através de um tio que continuava residindo no vilarejo de minha infância que o meu desafeto regressara para passar os últimos dias de sua velhice na terra natal. Havia chegado a hora, não poderia deixar para depois, era agora ou nunca. Convenci minha esposa e os filhos já rapazes de que precisava ir ajudar a família em uma questão de terras, mas que logo estaria de volta a casa.
Cheguei pela manhã, no primeiro trem — e foi como se a vida toda desfilasse em minha mente, as idéias tornavam—se confusas: o passado e o presente se misturavam como se fosse em um sonho. Passei o resto da manhã meio perdido, não conseguia reconhecer ninguém. Da janela da hospedaria fiquei esperando a saída dele para um passeio, e que fosse à tarde, do jeitinho de outrora.
Quando ele despontou na esquina da farmácia já era boquinha da noite. Eu me aproximei: olhei-o nos olhos, bem fundo, puxei vagarosamente a faca e, quando notei que o seu olhar me reconhecia (tive certeza disso), afundei-a toda em seu peito, depois outra e mais outra. Da surpresa inicial de seus olhos passou para não mais reagir tentando se proteger com as mãos, agora aceitava tudo parado a me olhar tristemente - as feições de surpresa e dor deram lugar a uma calma superior, quase arrogante. Olhou-me bem fundo. Neste instante meu braço jazia parado no ar, um último golpe inútil fora contido por aqueles olhos. E o que vi em seguida, teria preferido a morte, um simples olhar sereno, mais forte que toda a minha raiva guardada, um único olhar que eu jamais vira em toda a minha vida, um olhar de quem não estava mais neste mundo, um olhar que (com certeza) nunca mais me dará paz nesta vida. Fugi como o diabo foge da cruz, depois me apresentei com advogado e cumpro (em parte devido à idade) a pena em domicílio; porém sinto que já não vivo depois daquele olhar. E desde aquele dia não levanto a vista, pois não sou mais digno de olhar para mais ninguém neste mundo.


por Pedro Salgueiro

NINGUÉM É POETA POR ACASO

Os primeiros poemas são lavras mínimas. Talvez até odes avulsas. Quando o poeta aprendiz pega o manejo daquilo que se lhe é íntimo, vira arauto pós-moderno e, no fazer poético propriamente dito, interpreta a alma das coisas, traduz o indizível, lastra-se por atacado, errando mãos e tecendo o indefinido.
Sensível pela própria natureza. Como poesia não é necessariamente rima, métrica, mas a Poesia mesmo, em si, com bilros e rocas, ele vai, feito singer íntimo, compondo versos do ser de si, ora verde, ora na moenda do Sentir, tocando o sagrado, porque arte é coisa espiritual, fogueiras de vaidades a parte.
Assim, tenho para comigo, que Poeta simplesmente É. E isso por si só já é muito. Enluos, ninhais, encantários.
Mais as sofrências do desdizer, gracezas, tristices pegajentas como se tivesse o dom-direito de sentir primeiro, sofrer mais, carregar o mundo nas costas. E ele, o mundo, como disse Drumond de Andrade (nosso maior poeta desse lado do oceano), não pesa mais do que a mão de uma criança.
Depois que o poeta pega o traquejo da palavra, no frever o íntimo, com sua angústia-vívere, com sua solidão-albatróz, vai se norteando por mundos e fungos. Antena da época, só para citar Rimbaud, o poeta cisma, reina, orna.
Com heterônimos (como Pessoa) ou de próprio punho e cunha, com sua poesia descalça, rueira, com sua maneira diferente de ver-(pensar) as coisas, vai vertendo salmos, mantras, blues e acontecências adjacentes.
E respeita sua tristeza que é sábia.
Com sua poesia feito metralhadora cheia de lágrimas, no confeito do sentir e escrever, o poeta mal cabe em si quando cria, porque, afinal, nesses tempos tenebrosos de muito ouro e pouco pão (neoliberalismo globalizador), ninguém é de ferro e, perdão, o bom cabrito é o que berra.
Ou, como dizem os poetas brasileirinhos, FAZ ESCURO MAS EU CANTO - Ou, ainda, o importante é que a Poesia sobreviva. Citando Manuel Bandeira: não acredito em arte que não seja libertação.
Daí que o poeta se faz - e de perto ninguém é normal, citando Caetano Veloso - ele pode se aventurar em naus catarinetas de prosas surrealistas, em naus (dos insensatos) de crônicas marginais, haikais clandestinos, porque quem sabe a Poesia, deita e rola, conhece sinais e parecenças, voa.
E destila o vinho-verbo em prosa, ficcção, ensaio, romances, porque poesia é esteio, epifania, bordel excelência, lagar, estuário, hangar de todas as honras.
Quase todos os poetas escrevem bem qualquer coisa. Meno male.
Já, nem todo Ser que só faz prosa, se aventura (com o cinzel do íntimo) em poetar versos emplumados de contentezas e filosofias que são confeitos do poema mal cabendo em si.
Amigos meus, poetas radicais (e não somos todos?), sobrevivem bem em todas as áreas, bons jornalistas, ótimos cronistas, compõem e cantam, se deixarem - ai os arautos donalistas, ótimos cronistas, compõem e cantam, se deixarem - ai os arautos dos deuses - até mesmo fazem strepe-tease ou, dando nós em pingos d´água, maroteiam sacolejantes em mambos, calipsos e twistes.
Os proseadores não ousam tanto. Escrevem muito, bem, gardênias narrativas, mas sabem que as águas dos poemas são lingotes pingando luz de algas íntimas. Isso pelo menos penso eu, pequeno poeta que tenho muito que aprender, boêmio pela própria natureza...
E se for para o bem da irrazão com curtumes, decantários ou estrias de alma, digam ao povo que Poeto. Aliás, tenho um poemeto antigo (quase haikai) que digo:
Naufrágio no saveiroPoetasE grávidas primeiroO último a sair apague o sol.


(Rascunho Um - Texto Inédito da Série: Confesso Que Bebi)
Silas Corrêa Leite

O HOMEM NU

Ao acordar, disse para a mulher:
-- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da

televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
-- Explique isso ao homem -- ponderou a mulher.
-- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar -- amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro
para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre
o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de
tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão.
Bateu com o nó dos dedos:
-- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu -- chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
-- Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele
começa a descer.
-- Ah, isso é que não!
-- fez o homem nu,sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e
daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais
autêntico e desvairado Regime do Terror!
-- Isso é que não
-- repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o
elevador subir. O elevador subiu.
-- Maria! Abre esta porta! -- gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria
atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando
inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do
apartamento vizinho:
-- Bom dia, minha senhora -- disse ele, confuso. -- Imagine
que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um
grito:
-- Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
-- Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se
passava:
-- É um tarado!
-- Olha, que horror!
-- Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para
ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois,
restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
-- Deve ser a polícia -- disse ele, ainda ofegante, indo
abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

Este é um dos contos mais famosos do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.

O RETRATO OVAL

O castelo que meu criado resolvera arrombar a fim de evitar que eu, gravemente ferido estava, passasse a noite ao relento, era uma dessas construções portenhosas, a um só tempo lúgubre e grandiosa, que há séculos assombram a paisagem dos Apeninos e também povoam a imaginação da senhora Radcliffe (1). Ao que tudo indicava, o edifício fora abandonado há pouco e de modo temporário. Acomodamo-nos num dos aposentos menores, mobiliado com menos suntuosidade que os demais e localizado num torreão afastado od castelo. A decoração rica, embora degastada e antiga. As paredes, cobertas por tapeçarias, também eram adornadas não só por inúmeros troféus de armas dos mais variados formatos, bem como por uma quantidade excessiva de pinturas modernas muito vivazes, emolduradas por ricos arabescos dourados. Talvez o delírio que meacometera tivesse sido a verdadeira causa de meu profundo interesse por essas pinturas, por esses quadros que pendiam não apenas diretamente da superfície das paredes, como também se revelavam nos incontáveis nichos ali presentes, criados conforme o estranho estilo arquitetônico do castelo. Assim sendo, como já anoitecera, ordenei que Pedro fechasse as pesadas venezianas do quarto, acendesse as velas do grande candelabro junto à cabeceira de minha cama e abrisse completamente o cortinado de veludo negro arrematado por franjas, que circundava todo o leito. Desejei que tudo isso fosse executado o mais brevemente possível para que, se acaso não conseguisse me entregar ao sono, ao menos pudesse me dedicar à contemplação das pinturas, acompanhando-a da leitura de um pequeno livro, encontrado ao acaso em cima de meu travesseiro, que continha descrições e apreciação crítica das obras. Passei um longo espaço de tempo lendo, relendo e contemplando as obras com muita admiração. No decorrer desses momentos gloriosos as horas se passaram num instante até soarem as badaladas profundas da meia-noite. Como o candelabro não estivesse mais numa posição que me favorecesse a leitura e, por não quere perturbar o descanso de meu criado já adormecido, preferi eu mesmo, embora com alguma dificuldade, estender o braço e ajeitar a luz de modo a iluminar melhor as páginas do livro. Porém, esse simples gesto meu produziu um resultado totalmente inesperado. Vindos das inúmeras velas (havia muitas no candelabro), os raios de luz foram bater justamente num dos nichos do quarto que até o momento estivera completamente envolto na sombra projetada por uma das colunas de minha cama. Só assim pude ver plena à plena luz um quadro que me passara despercebido até então. Era o retrato de uma moça na flor da juventude prestes a entrar na plenitude de sua femilidade. Olhei o quadro num relance, fechando os olhos logo em seguida. De imediato, nem eu mesmo pude perceber por que motivo agira assim. Entretanto, ainda com as pálpebras cerradas, pus-me a pensar sobre a causa desse meu ato. Na verdade, fora apenas um movimento impulsivo que me permitira ganhar tempo para refletir - para me certificar de que meus olhos afinal não me haviam enganado -, para me recobrar e dominar a fantasia a fim de poder então lançar-lhe novo olhar, com mais calma e segurança. Pouco depois fixei outra vez o olhar na pintura, demoradamente. Dessa vez não havia a menor dúvida de que não estivesse enxergando direito, pois aquele primeiro momento em que a luz das velas incidira sobre a tela servira para dissipar uma vez o vago estupor que começara a entorpecer-me os sentidos, despertando-me completamente para a realidade a meu redor. Como já disse, tratava-se do retrato de uma jovem. Utilizando a técnica a que se costuma denominar "vignette", o quadro reproduzia-lhe apenas a cabeça e os ombros e assemelhava-se muito ao estilo das melhores cabeças pintadas por Sully (2). Os braços, o colo e até mesmo as pontas dos cabelos esplêndidos misturavam-se imperceptivelmenteà sombra indeterminada e profunda que formava o plano de fundo. A moldura era oval e dourada, enfeitada por ricas filigranas à moda mourisca. Como obra de arte nada poderia se igualar à pintura em si. Contudo, a emoção tão avassaladora e repentina que se apoderara de mim não poderia ter sido ocasionada pela maestria do pintor ou pela imortal beleza daquela fisionomia. E tampouco poderia ter sido fruto da minha imaginação abalada que desperta de sua semi-sonolência, tivesse-me feito confundir a imagem ali representada com a cabeça de uma mulher de carne e osso. Logo constatei que as peculiaridades do desenho, a técnica do vinhetista e da moldura deviam ter bastado para eliminar tal idéia imediatamente, impedindo que eu a tivesse nutrido ainda que por um breve momento. Passei talvez uma hora inteira a refletir sobre essas questões, meio debruçado para a frente, com os olhos cravados no retrato. Por fim, satisfeito com o verdadeiro segredo do seu efeito, recostei-me à cama outra vez. Descobri que a mágica da pintura residia na absoluta verossimilhança daquela expressão que inicialmente me sobressaltar, para enfim me confundir, dominar e aterrorizar. Foi com profundo temor e reverência que recoloquei o candelabro na posição anterior. Uma vez que o motivoda minha profunda inquietação estava assim fora do meu campo visual, passei a examinar avidamente o livro que tratava dessas pinturas e de seu histórico. Depois de folheá-lo rapidamente até encontrar o número referente ao retrato oval, procedi à leitura do texto curioso e fantástico que transcrevo a seguir: "Era uma jovem de rara beleza, cheia de encantos e alegria. Infeliz a hora em que encontrou o pintor, apaixonou-ser e com ele se casou. Ele, um homem passional, estudioso e austero, já tendo a Arte por sua amada. Ela, uma jovem de rara beleza, cheia de encantos e alegria, plena luz e sorrisos, travessa como uma gazela nova, afetuosa e cheia de amor à vida; odiando somente a paleta, os pincéis e demais instrumentos aborrecidos que a privavam da companhia do amado. Foi, portanto, com profundo pesar que essa jovem ouviu o pintor expressar o desejo de retratá-la a ela, sua bela esposa. Porém, por ser dócil e meiga, posou para ele por várias semanas, imóvel em meio à penumbra daquele aposento do alto da torre, iluminado apenas por um único foco de claridade que descia do teto e incidia diretamente sobre a tela, deixando o resto na escuridão. Já o pintor rejubilava-se com o trabalho, prosseguindo hora após hora, por dias a fio. Era um homem obcecado, irreverente e temperamental, sempre a perder-se em desvaneios; tanto assim que recusava-se a perceber que a luz nefasta daquela torre deserta consumia a saúde e o ânimo de sua esposa a qual definhava aos olhos de todos, exceto aos seus. E no entanto ela sempre sorria e continuava a sorrir sem se queixar porque notava que o pintor (artista de grande renome) desfrutava um prazer ardente e avassalador ao executar a obra sem jamais esmorecer, trabalhando dia e noite para retratar aquela que tanto o amava, mas que se tornava cada vez mais fraca e melancólica. Na verdade, aqueles que puderam ver o retrato comentaram em voz baixa a total fidelidade entre modelo e obra, atribuindo-a a um prodígio excepcional, prova cabal não só da perícia do pintor como do amor profundo que dedicava àquela a quem retratava com tanta perfeição. Porém, com o tempo, à medida que se aproximava a conclusão do trabalho, ninguém mais obteve permissão para entrara na torre, pois o pintor entregava-se à loucura de sua obra e raramente desviava os olhos da tela, nem mesmo para olhar o rosto de sua mulher. E recusava-se a perceber que as cores que ia espalhando por sobre a tela eram arrancadas das faces daquela que posava a seu lado. Passados alguns meses, quando quase mais nada restava a ser feito a não ser uma pincelada sobre a boca e um retoque de cor sobre os olhos, o espírito da jovem reacendeu-se ainda uma vez, tal qual chama de uma vela a crepitar por um instante. E então executou-se o retoque necessário e deu-se a pincelada final e, por um momento o pintor caiu em transe, extasiado com a obra que criara. Porém, no momento seguinte, ainda a contemplar o retrato, estremeceu, ficou lívido e, tomado de espanto, exclamou com um grito: "Mas isto é a própria vida!" E quando afinal virou-se para olhar a própria amada... estava morta!"

(Edgar Allan Poe).

PLEBISCITO

"Plebiscito"
A cena passa-se em 1890. A família est toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balan‡o. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, est muito entretida a limpar a gaiola de um can rio belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o can rio. Ele, encostado … mesa, os p‚s cruzados, lˆ com muita aten‡ão uma das nossas folhas di rias. Silˆncio. De repente, o menino levanta a cabe‡a e pergunta: - Papai, o que ‚ plebiscito? O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: - Papai? Pausa: - Papai? Dona Bernardina interv‚m: - O seu Rodrigues, Manduca est lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem rem‚dio senão abrir os olhos. - Que ‚? Que desejam vocˆs? - Eu queria que papai me dissesse o que ‚ plebiscito. - Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que ‚ plebiscito? - Se soubesse não perguntava. O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: - O senhora, o pequeno não sabe o que ‚ plebiscito! - Não admira que ele não saiba, porque eu tamb‚m não sei. - Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que ‚ plebiscito? - Nem eu, nem vocˆ, aqui em casa ningu‚m sabe o que ‚ plebiscito. - Ningu‚m alto l ! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! - A sua cara não me engana. Vocˆ ‚ muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que ‚ plebiscito! Então? A gente est esperando! Diga! - A senhora o que quer ‚ enfezar-me! - Mas, homem de Deus, para que vocˆ não h de confessar que não sabe? Não ‚ nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. J outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era prolet rio. Vocˆ falou, e o menino ficou sem saber! - Prolet rio, acudiu o senhor Rodrigues, ‚ o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. - Sim, agora sabe porque foi ao dicion rio; mas dou-lhe um doce, se me disser o que ‚ plebiscito sem se arredar dessa cadeira! - Que gostinho tem a senhora em tornar-me rid¡culo na presen‡a destas crian‡as! - Oh! Rid¡culo ‚ vocˆ mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que ‚ plebiscito; vai buscar o dicion rio, meu filho. O senhor Rodrigues ergue-se de um ¡mpeto e brada: - Mas eu sei! - Pois se sabe, diga! - Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o bra‡o a torcer! Quero conservar a for‡a moral que devo ter nesta casa! V para o diabo! E o senhor Rodrigues, exasperad¡ssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de gua de flor de laranja e um dicion rio... A menina toma a palavra: - Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que ‚ tão perigoso! - Não fosse tolo - observa D. Bernardina - e confessasse francamente que não sabia o que ‚ plebiscito! - Pois sim - acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involunt rio de toda aquela discussão; - pois sim, mamãe; chame papai e fa‡am as pazes. - Sim, sim, fa‡am as pazes! - Diz a menina em tom meigo e suplicante. - Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito! Dona Bernardina d um beijo na filha, e vai bater … porta do quarto: - Seu Rodrigues, venh sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balan‡o. -  boa - brada o senhor Rodrigues depois de largo silˆncio -  muito boa! Eu, eu ignorar a significa‡ão da palavra plebiscito! Eu!.. A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogm tico: - Plebiscito... E olha para todos os lados a ver se h por ali mais algu‚m que possa aproveitar a li‡ão. - Plebiscito ‚ uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em com¡cios. - Ah! - suspiram todos, aliviados. - Uma lei romana, percebem! E querem introduz¡-la no Brasil!  mais um estrangeirismo!...


por artur azevedo

MORTE DO LEITEIRO

Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, É preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafas, e seus sapatos de borracha vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade.
Não mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro, morador na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos também escondesse gente que aspira o pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro... Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumor sempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? Se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue... não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram , suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora.


por Carlos Drummond de Andrade

UM ESPINHO DE MARFIM

Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ele vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.
Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.
Quero esse animal para mim. E imediatamente ordenou a caçada.
Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista, confundindo-se no rastro.
Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor de fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.
Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal de sua presença. E silêncio nas noites.
Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo. E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido. A princesa penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente.
Durante três noites trançou com fios de seus cabelos uma rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do quarto dia , quando o sol encheu com a primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.
Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.
A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa, espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.
Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas patas finas.
Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?
Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado aos seus pés, esquecidos do prazo.
As três luas porém já se esgotavam. Na noite antes da data marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o unicórnio comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos, confundia-se com os perfumes.
Amanhã é o dia. Quero sua palavra comprida, disse o rei- virei buscar o unicórnio ao cair do sol.
Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar o amor era preciso.
Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que haviam se encontrado a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o fundo de seus olhos. E como no terceiro dia aproximou a cabeça do seu peito, com suava força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.
Quando o rei veio em cobrança da promessa, foi isso que o sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de lírios.


por Marina Colassanti

VENHA VER O PÔR-DO-SOL

ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus.
Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?- Cheias?...
- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

por Lygia Fagundes Telles

O OVO E A GALINHA

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.
O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.
A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.
Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.


por Clarice Lispector

AMPLEXO

Já sabia que as temperaturas extremas eram uma das características dos desertos. O que nunca tinha pensado era que a sua amplitude fosse tão dolorosa para o corpo e para o espírito.
Perdera-me da caravana e encontrava-me só, fustigado, na face mal agasalhada, por um vento boreal salpicado de agulhas arenosas.
A noite caíra célere, escura e sem estrelas. Sucedera-lhe a fome, a sede e a ansiedade. Despicienda seria qualquer tentativa de orientação. Ir ou ficar? Aguardar que me procurassem, ou apostar numa direcção aleatória e calcorrear não sei que distância na expectativa de ter tomado o rumo certo?
Resolvi ficar. Ancorei no espaço à espera do tempo. O meteorológico, que talvez me pudesse salvar, assim o permitisse a sua doçura, e o cronológico, na esperança de que tivessem dado pela minha falta.
Mas o tempo não conhecia amarras, voava sem hesitação a caminho da morte.
Escolhi uma reentrância cavada na areia e aí me abriguei.
Apesar da escuridão, uma aura coada pelas meninas dos olhos desenhava rosáceas de mesquitas, sinagogas e catedrais, coloridas por raios cósmicos de religiosa luminosidade em que até um coração incréu reconheceria a unidade de todas as crenças do mundo.
Algures na realidade do sonho, os companheiros voltavam e davam vivas por ter-me encontrado. Na parte mais recôndita das lucubrações, conseguira voar e dormia tranquilo no seio do grupo atrevido que decidira enfrentar a aventura.
Senti então a presença fátua, soturna e meiga.
Sem miragem nem oásis, um calor oloroso começara a envolver-me e mãos esotéricas eram sensação de pétalas a percorrer-me o corpo. Lábios quentes e sensuais beijavam-me com ardor e seios úberes propiciavam-me carícias de gelatina, mornas e suaves. De enregelado, o sexo eréctil lançou-se à descoberta da comunicação máxima. Do devaneio erótico, floresceu calorosa relação edipiana, símbolo do retorno à origem remota do ser.
Afinal, a solidão é um deserto habitado, gineceu fecundado pelo sémen da imaginação. Solitário talvez seja quem não sabe vencer o sofrimento e encher o vazio de poesia e ilusão, de música e flores.
Nunca a linearidade da linguagem me parecera tão pobre face à cascata de pensamentos a descrever.
Ali fiquei e julgo que ainda estou.
Até a companhia da morte é melhor do que estar só.

por Joaquim Evório
PORTUGAL

LIMITE

Impuseram 20 linhas. Todos a postos: canetas e lápis. Apontar. Já! Dias depois o resultado: lamentamos, mas no momento não podemos ajudá-lo. Mais um, dois, três testes. Nenhum emprego. E a possibilidade de outras aventuras estava mais e mais distante. Sempre as tais 20 linhas. Nunca chegava ao fim das vinte linhas, a letra um garrancho. Aquele frio na barriga na hora do teste era uma constante assim como as dores de cabeça na véspera. Sempre com as 20 linhas vinha o indefectível medo. Naquela noite, pôs-se a escrever terrivelmente os seus sonhos, no dia seguinte o cotidiano, os dias passaram, não saia mais de casa, nem comia. Quando o encontraram, tinha uma caneta sem tinta à mão. Na foto, dava pra ver na parede: essa caneta podia ser um rosa.

por andré fernandes

O CORVO

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído, Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar."É alguém — fiquei a murmurar — que bate à porta, devagar; Sim, é só isso e nada mais."
Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais. Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava aindaAlgum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora— Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam LenoraE nome aqui já não tem mais.
A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina, Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.É apenas isso e nada mais.
" Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido, Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta, Assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta:— Escuridão, e nada mais.
Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais. Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"Depois, silêncio e nada mais.
Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente, Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais."É na janela" — penso então. — "Por que agitar-me de aflição?Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento. É o vento só e nada mais."
Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto: — É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto, Adeja e pousa sobre o busto — uma escultura de Minerva,Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva, Empoleirado e nada mais.
Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura, Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais."Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular" — então lhe digo —"Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!" Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"E o Corvo disse: "Nunca mais."
Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe, Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais; Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua portaE que se chame "Nunca mais".
Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria, Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,Enquanto a mágoa me envenena: "Amigos… sempre vão-se embora. Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora."E disse o Corvo: "Nunca mais."
Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo, Julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventuraE a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: — o ritorneloDe "Nunca, nunca, nunca mais".
Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim, Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo, Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo Grasnava sempre: "Nunca mais."
Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofadaDessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente, Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente,Já não repousa, ah! Nunca mais…
O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incensoAli descessem a esparzir turibulários celestiais. "Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus, Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora,Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"E o Corvo disse: "Nunca mais."
"Profeta! — brado. — Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais, De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precitaMansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!"E o Corvo disse: "Nunca mais."
"Profeta!" exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal! Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora, Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais!"
"Seja isso a nossa despedida! — ergo-me e grito, alma incendida. — Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais! Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste! Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!" E o Corvo disse: "Nunca mais!"
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais. No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra, Não há de erguer-se, ai! nunca mais!

por Edgar Alan Poe

A PARADA DA ILUSÃO - CONTO

Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais espertos. Como tinha sido!... O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa-de-meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneários. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir de onde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas, por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.
Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos freqüentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocotes, as cocotes de uma palidez mortal àquela hora... e havia também muita mulher chique, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.
Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois descansar na gerência ia trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.
Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta a um dos quartinhos e uma linda criatura loira chamou: - O senhor banhista, venha cá.
Nicolau adiantou-se.
- Não, o outro. Sim, você mesmo.
Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço de Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loira estava já vestida para o banho.
- Não quero mais aquele banhista velho. Há cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-se o quarto seco. Não há meio. Veja só. Fica você. Quer?
Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loira abriu a bolsa de prata, tirou uma nota. - Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.
- Grazzie, signorina...
- Diga: é italiano?
- Io sono venuto da Napoli fa tre anni...
- Ah! bem. E quantos anos tem de idade?
- Vinte e due.
A dama loira olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou:
- Como se chama?
- Túlio.
- Venha dar-me banho.
Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loira, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por um banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loira chegava sempre às seis e meia.
- Então, Túlio, o meu quarto?
- Pronto patroa, prontinho.
No fim do quinto dia ele fazia o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome. Era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.
- Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos...
Ou então:
- Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa! Ele sorria queria levá-la para longe.
- Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme...
Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho,.
Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisas grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:
- Você, um rapaz inteligente, por que não muda de vida?
- Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer...
- Criança! E não tens aspirações?
- Não, signorina!
- Aposto que nem sabe ler? Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.
- É verdade. Nem sei ler.
- Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!
Os seus olhos nesse dia tornaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uma onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.
No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:
- Ó Túlio, quereria você aprender a ler?
- A signorina paga o professor?
- Ensino eu mesma.
- Então quero. Onde?
- Vá à minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.
Ele arranjara um dólmã de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loira habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.
- Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta... Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se...
Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa, aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.
- Que letra é esta?
Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os loiros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. Às vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro:
- Bom, vai embora.
Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia tocá-la, quando ela chamou:
- Francine, acompanha o Túlio até a porta...
Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição, tomar uma atitude. Mas para quê? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira - aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi esperá-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também amá-lo, porque apareceu de olheiras, com ar fatigado.
- Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.
- Palavra?
- Quer tomar a lição hoje?
- Não, amanhã...
Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.
- Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.
A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nunca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.
- Ah! Túlio...
Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam em outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:
- Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor...
A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução do mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais o incendiava. No banho, ela esperava o momento de apertá-lo, de mordê-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.
Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convencê-la de uma breve separaçào. - Tu queres, Túlio?
- É para o teu bem.
- Queres mesmo? É o nosso amor que matas...
Eleutério comprara as passagens combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade. Ele ia para o último ato.
Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.
- Meu amor... A última vez!
E deixou-se cair.
- Alda, que é isso? ânimo...
- Lembras-te? Há dois meses!... Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido... Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha ao meu lado, forte, meu fiel... Dize!... Nenhuma outra será como eu. Pois não?
- Mas, Alda...
- Àquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar...
Geraldo viu que era o momento.
- Alda, tenho que te dizer...
- Não digas! não digas nada!
- Não, há um engano; um engano que não pode continuar.
- Não há, Túlio, não há!...
- Há.
- Pois deixa-o!
- Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.
- E não és? És sim, és o meu Túlio.
- Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.
Mas, como Alda recuava, com a fisionomia transmudada, Geraldo teve um resto de piedade.
- Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar...
Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.
- Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.
- Mas a nossa última noite?
- Vai-te.
- Zangaste-te?
- Não, pensei que tinhas mais espírito. Não tens. Eu sabia, ouviste? eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.
Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retornava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o reconhecessem ainda mal vindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pôde chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida - a ilusão...

por João do Rio