quinta-feira, 22 de março de 2007

OLHO MÁGICO: CIDADE DOS SONHOS

A avenida mais iluminada do planeta, protegida por dois paredões de concreto e aço, projeta-se sonho adentro. Ele torce o nariz, não acredita no que digo. Ela me pede que continue, que lhe conte tudo. Ele dá de ombros. Ela abraça o sonho. Eu avivo o fogo, mexo nos gravetos que ardem na clareira enluarada e aviso a quem quiser me ouvir, esqueçam o que sabem, desliguem o cérebro, fechem os olhos e durmam, porque a metrópole vem aí, não adianta querer preservar o presente pra sempre, a avalanche é inevitável. Falo de São Paulo, paraíso e pesadelo. Falo dos bairros sujos de São Paulo, das ruas violentas de São Paulo, do céu enfumaçado de São Paulo. Pra ele e pra ela é como se falasse da cidade futura, da invasão do lixo e da miséria, de viadutos rachados e vagabundos de outro planeta tentando contato via rádio de pilha - estática, grupo de pagode, as putas da General Osório sintonizadas na alta do dólar. Mais curiosos vão se juntando ao redor da fogueira, querem saber quando São Paulo finalmente chegará aqui, em pouco tempo somos vinte, trinta aborígenes muito preocupados com a grande invasão: tribo extinta antes mesmo da morte do último indivíduo. Falo da cidade que se aproxima erguendo altas colunas de poeira, fazendo chover óleo diesel, monóxido de carbono e ácido clorídrico nas plantações de soja e cana-de-açúcar. Falo do edifício mais alto da América Latina, do edifício de mais de quarenta andares, de onde se enxerga tudo o que há em torno, de onde se enxerga a Paulista e todas as outras avenidas, pra onde o Centro Velho, a estação Júlio Prestes e a praça da Sé olham com mais atenção e raiva, pra onde o Pátio do Colégio, o Teatro Municipal e o Minhocão jogam beijos de galã de novela, para onde os marginais e as marginais do rio Pinheiros e as do rio Tietê, o pico do Jaraguá e a serra da Cantareira escapam nas noites de lua cheia. Falo de escadas e elevadores, de tudo o que serve pra nos levar pra cima. Porque é de cima, sempre do alto, que a vida começa a fazer sentido. Guindastes, escavadeiras, betoneiras, bate-estacas, pás, picaretas, os paulistanos construíram a torre de Babel do nosso tempo, ergueram-na camada após camada na direção do sol, ergueram-na com arrogância e soberba mas diferente do que se esperava não foram fulminados por isso. Não tocaram as nuvens, muito menos a morada dos deuses, mesmo assim receberam seu prêmio. Não ultrapassaram as estrelas, muito menos o coração da galáxia, mesmo assim ganharam a mais empolgante das visões: São Paulo de horizonte a horizonte, trezentos e sessenta graus de janelas, cabos e asfalto. As crianças se assustam, já não sei se comigo - com as rugas irritadas da minha voz - ou se com as explosões demoníacas dentro da fogueira. Ele esfrega as mãos, alisa o cabelo e se afasta, não quer saber dessa história maluca, desse conto de fadas. Ela está cansada, sua boca está cansada, seus olhos estão brancos, cansados e encolhidos, ela sente frio apesar de estar tão perto do fogo que por pouco ainda não se queimou. Alguém traz várias garrafas de café e chá, o ronco e o rangido dos carros que chegam e param embaixo da mangueira e do eucalipto, os pneus dianteiros afundados no barro ao lado da cerca de bambu, não me tiram a concentração. Continuo dando volta à fogueira, contando a respeito das tubulações de gás rompidas, dos postes partidos por árvores doentes, das bocas de lobo que durante a chuva deixam de engolir água, dos quarteirões inundados, da merda, dos ratos e dos restos de comida que flutuam pra dentro das casas, da lama dos esgotos colada nas paredes fedorentas. Falo dos cães de guarda de São Paulo, das crianças violentadas de São Paulo, dos seqüestros de São Paulo. Falo de dobermanns e rottweilers, falo de entregadores de flores e de pizza, falo de pistolas semi-automáticas, granadas e submetralhadoras. Ela está toda encolhida, enrolada num cobertor fino. Ao passar devagar ao seu lado acaricio seu cabelo vermelho. Ele continua longe, encostado na cerca de bambu, a ponta do cigarro fazendo sinais, comunicando-se em código morse com a fogueira. Eu continuo falando, encavalando rinocerontes e girafas na entrada do Jardim Zoológico, mandando bola nas traves do estádio do Morumbi, jogando jatinhos contra boeings no aeroporto de Congonhas. As crianças não querem ouvir mais, pegam gravetos com a ponta em brasa e riscam o ar pra longe de nós. Falo de bangue-bangue e golpes de jiu-jítsu, falo de guarda-costas e escudos humanos, falo de automóveis blindados, com vidros de vinte milímetros e pneus envolvidos em cinta de metal. Querem saber como impedir o avanço da metrópole, querem que eu lhes prometa que isso não vai acontecer, que São Paulo jamais chegará aqui. Duas velhas oferecem bolo de fubá e biscoitos de milho, as bandejas tremem de medo, os brincos pressentem a aproximação de algo terrível - as velhas, as bandejas e os brincos não querem morrer soterrados pelo MASP e pelo Viaduto do Chá. A invasão é inevitável, eu digo a todos. E repito, inevitável, enfiem os olhos na fogueira e vejam por si sós, amanhã a esta hora São Paulo terá encampado a cidadezinha onde vocês nasceram, terá destruído as plantações e os pastos, terá recoberto cada centímetro quadrado de suas vidas com a película do progresso, com as cinzas e o sangue da explosão urbana. Porque São Paulo não pára, é apenas boca, estômago e cu, come e caga o dia todo. Porque São Paulo não tem olhos nem ouvidos nem tato: feito fogo na floresta, tem é muita fome. Porque São Paulo é círculo de paladar refinado, é vegetariana, carnívora, macrobiótica, visita todas as mesas, expande-se em todas as direções. Trouxeram mais gravetos para a fogueira, a temperatura cai rapidamente mas ninguém pensa em sair daí, no colo de metade da audiência as crianças dormem o sono dos injustiçados, balbuciam bolhas de guaraná e de pesadelos em miniatura, sonham com a teia de fios elétricos e de antenas telefônicas, com doze mil ônibus e cinco milhões de carros buzinando nas suas orelhinhas. Pelo olho mágico do centro da fogueira assistimos à chegada dos trilhos e dos vagões do metrô, das escadas rolantes e dos painéis de aviso que nos informam, ríspidos como os alto-falantes, que o tempo de espera entre um trem e outro é de dois minutos. A hora do rush me pega de surpresa justo quando, seguindo o exemplo dos outros, eu também me preparo para alimentar a fogueira. Parte do piso do shopping Eldorado salta do fogo para o graveto e depois para o meu braço estendido, o metrô passa, o chão treme e em meio minuto estou inteiro em chamas. A linha de ônibus 4111 (V. Monumento-Pça. da República) atraca-se com a 408-A (Machado de Assis-Cardoso de Almeida) na altura do meu ombro, esfarelando os ossos. Não sinto nenhuma dor. Minha língua queima, meu cabelo queima, sou o Tocha Humana: pelado, iluminando a noite. Ela tenta segurar meu braço mas é arrastada pela correnteza que escorre pra fora da fogueira, ele nada na sua direção, mergulha no tonel de azeitonas do Mercado Central, engole vinho, salta pra fora da gôndola de salmão e acaba tragado pelo redemoinho. Ergue-se a onda de mais de cento e cinqüenta metros de altura, os patos e os marrecos do parque Ibirapuera voam através da roda-gigante do Playcenter, que rola e quica e atropela os carros embaixo do eucalipto. Ouço o chiado da minha própria carne que apesar da água insiste em queimar. A onda metropolitana quebra sobre nossas cabeças - brincos, sapatos e óculos sobram pra todos os lados, misturados com os sushis e os chucrutes servidos pelo Grupo XPTO. Lá adiante a Vila Madalena enrola-se em si mesma e se choca contra os recifes, o oceano recua pra voltar com mais força, em cima de nós o Tatuapé e a Mooca espirram espuma e sal, afogando os mais velhos, divertindo as crianças, apagando meu fogo e gelando meu ânimo. O espírito da Rebouças, da 23 de Maio, da Lins de Vasconcelos e de todas as grandes avenidas de São Paulo rodopia em torno de nós, atravessa a floresta, entra no centro da cidade e reduz à poeira o que já é pequeno: destrói nossa igreja, nossas casas comerciais e nossas residências, pulveriza tudo e ergue no seu lugar viadutos, edifícios, pavilhões e shopping centers. A correnteza devagar vai perdendo a força, os novos quarteirões e as novas placas de rua já não rodopiam tão rápido, os luminosos começam a piscar na freqüência tolerável para o olho humano e o trânsito, onde antes havia apenas pasto e desolação, apesar de intenso não dá mostra de querer desrespeitar o sinal fechado. Meus antigos amigos, as pessoas com quem estive ao redor da fogueira, não me reconhecem mais, deixaram metade da memória nas dependências do Memorial da América Latina, a outra metade perderam por aí. Eu também aos poucos começo a me esquecer de todos: novas roupas, novos endereços, novas identidades. A última lufada de ar põe na minha mão o guia da cidade, as linhas do metrô, a Casa das Rosas e o Monumento às Bandeiras. Graças ao empurra-empurra cada peça encaixa-se no seu devido lugar. São Paulo instala-se confortavelmente sob nossos pés, sobre nossas cabeças: a madrugada provinciana, nossa amada madrugada úmida e estrelada, é agora a madrugada paulistana, seca e fuliginosa. Mas nem tudo está perdido, existe alguém de quem não consigo me esquecer. Em questão de minutos, ela, minha amiga nos momentos difíceis, renascendo mais bonita do que nunca desembarca na estação da Luz. Ela está cansada, sua boca está cansada, seus olhos estão brancos, cansados e encolhidos, ela sente frio e não há mais fogueira com a qual se esquentar. Compro-lhe flores na banca mais charmosa da Dr. Arnaldo. Na mesma banca que, ao que tudo indica - meu nome está pintado na fachada -, sempre me pertenceu e onde trabalho há anos.

por NELSON DE OLIVEIRA

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