quinta-feira, 22 de março de 2007

MISTÉRIOS

Somos nós garotas pequenas no espelho da caixinha de música, que para o voltear da branca bailarina de plástico em saia de gaze toca a Pour Élise [música que sei tocar no piano ganho de meu pai]; posso ver, abaixo das cortinas que também dançam na noite quente, a dentadura amarela e preta do piano, por trás dos meus olhos azuis, através do espelho - e é como se ele nos quisesse devorar em tons menores, eu e eu, bailarina e bailarina. Porém, entre uma oitava e outra se interpõe o cinto metálico do meu pai.
- Graça!
Meu pai me nomeia não com a doçura ou uma certa vaidade como de sempre, nas vezes em que me ensina a tocar valsas, mas de um jeito que minha pele toda se arrepia, da nuca ao final da espinha; e tudo que posso fazer é virar meu pescoço - que parece estalar quando ele meu pai me dá um tapa:
- O que era aquilo que você escreveu no seu diário, hein, menininha? - Me levanta pelos ombros com suas mãos calejadas e precisas. - Sua menina suja! - As mãos dele têm pêlos pretos, como aqueles, arrepiados, de cima da boca de sussurro, um mustache de gato no cio; meu rosto parece uma floresta de pêlos vermelhos enquanto ele me empurra: - Você vai queimar o seu diário e é já, na minha frente, viu? Sua… Você contou alguma coisa disso para alguém? Contou? - Eu quero dizer que não, mas a minha boca treme e eu não consigo olhar para ele meu pai, os ouvidos explodindo com a contínua musiquinha, eu quero ser a bailarina, eu quero ser a - Contou? Você contou, né? - me sacode de novo pelo meu quarto de princesa cujo corpo não a obedece, eu quero falar - Fala! Fala pra quem você contou? - um bigode de retrato sépia ele tem, penso ao mesmo tempo em que meus ossos chacoalham sob os pulsos e só agora percebo-me nua vinda do banho distraída com saudade da bailarina presente de aniversário - Pra quem foi, menina imunda? Pra quem? - é sangue isso que sai da boca? outro tapa - Diz, menina, se não quiser apanhar de verdade! - me aperta e desembesta pra todo lado e eu vou fugindo de costas mas minha espinha só encontra atrás o espelho onde caio e me corto e me rompo até o corpo, meu maior inimigo, dançar uma valsa de choro e grito em que um calor de vidros me lambe e me lanha e então são só as mãos dele meu pai me pegando de novo agora leves desculpas - meu Deus, que loucura, o papai não quis - , enquanto a música e a bailarina cada vez mais remansosas. E detrás do abraço quente a verde tarde, lá fora.
Minutos depois estou sentada nesta mesa rodeada de plantas e seus cheiros de pássaros em vôos breves, a observar a drosera comer mais uma drosophila melanogaster. Sou eu mesma quem traz as mosquinhas para o almoço da planta carnívora aqui no escritório do meu primeiro emprego - escondida do seu Horácio, é claro, ele não se conformaria com o meu prazer em observar a planta em raiz de ratoeira e o lento trabalho de ressecamento a que o inseto é submetido até virar dois olhos secos. O telefone toca e eu atendo:
- A GPA Paisagismo informa: hoje, 20 de janeiro, é o dia do músico, do médico rural e de São Jerônimo. Bom dia. Seu Horácio? Quem gostaria? É de onde?
Transfiro a ligação para meu chefe, com voz atapetada - ele tem ouvidos de vidro - e volto a preencher, obstinada, as palavras cruzadas, meu passatempo favorito. Um lápis na boca e os dedos nos cabelos que uso compridos e lisos, último ciclo da lagarta? Seu Horácio aprecia gravatas borboletas sempre e quase tanto o mesmo terno cor de ferrugem que combina bem com o tom de seus solitários cabelos. Ele é baixinho e me manda toda vez que eu atendo ao telefone dar esse serviço de utilidade pública [como ele declama] de citar as efemérides e datas comemorativas todo santo telefonema, embora isso não tenha nada a ver nem a ouvir com esta firma. O telefone outra vez: é a voz de Geraldo, um cara do meu curso técnico de propaganda; então só digo mesmo
- Alô? Oi, tudo bem?
e ele me convida para a pré-estréia do filme Frankenstein, história que sabe que eu adoro. Um rapaz tão gozado e bacana, tem um tique de subir e abaixar a cabeça enquanto fala, e adora me contar lorotas; gosto mais dele pelo telefone [pelo mistério], apesar de ele ser bonitinho, lá do seu desajeito. Mas logo que desligo: - Senhorita Maria das Graças, preciso lhe falar uma coisa.
- Sim?
- Percebi que a senhorita não informou há pouco as efemérides, que são nosso cartão de visita.
- Não?
- E já não é a primeira vez. - Hoje está de suspensórios. Olhos pequenos enviesados pela tartaruga dos óculos e mãos incríveis para avencas e orquídeas, como orgulhou-se a mim certa vez, muito bem assentado em seus sapatos de castanho verniz, Seu Horácio enquadra-me como se eu fosse capim. - Já não é a primeira vez que a senhorita tem esse lapso, tenho reparado…
Jogando ao ar estas reticências, coloca-me no coração uns pulos; minhas papilas secas e minhas pupilas acendem-se quando ele me dá as costas e pega o regador de alumínio, brilhante ao sol das vidraças abertas. Os suspensórios desenham em marrom um X por suas costas e seu olhar, ora refletido na vidraça dirigindo-se a meus olhos, ora demorado na samambaia em que ele asperge água francesa [suas plantas só bebem de outras terras], endurece-se quando ele me diz, doce:
- A senhorita está despedida. Justa causa.
Uma espécie de formigamento na nuca: os pêlos se eriçando, é o meu terceiro mês no primeiro emprego, o segundo ano após a morte de meu pai e a mensalidade do curso é para depois de amanhã. Vem um vento fresco da janela junto à mansa voz:
- Dia 20 de janeiro, dia da senhorita Graça esvaziar as gavetas…
Não sei por quê, penso no saco cheio de pobres mosquinhas, escondido na minha bolsa. No entanto, algum tempo após vários homens passeiam à frente de minha mesa transportando vidros longos e cheirosos de suor e massa de fixar, costas musculosas e fibrosas eles têm. Do outro lado da vidraçaria, no imenso galpão, o doutor Adolfo dá de comer ao seu mastim negro, acarinhando-o:
- Onde está o meu pretinho? O pretinho meu amiguinho? Meu amiguinho Bidu!
Alimentado o bicho, doutor Adolfo - um senhor muito enorme, gordíssimo de seu nariz adunco e profundos olhos gris e que se veste um tanto desleixadamente - me recomenda que devo melhorar a minha letra. Segundo ele, ela está - Muito pouco caprichada. Quem sabe um pouco mais de treino, hein? É simples: é só tentar. O erro é o primeiro passo para o acerto. E o primeiro acerto é o primeiro passo para o sucesso. Não posso ficar entregando essas faturas com essa letrinha de criança! E olha que a senhora já está bem crescidinha… já procurou o professor De Franco?
Este último é de um curso de caligrafia; entretanto, agora não tenho tempo para essas coisas, agora que estou grávida e preciso fazer as roupinhas do Marcos. Meu chefe sai da loja para a rua distribuindo ordem aos seus comandados, que colocam as grandes lâminas luminosas na caminhonete. Fico só. Olho para o teclado da máquina de escrever elétrica na mesa do doutor Adolfo [ele gosta de ser chamado assim, embora não tenha passado do ginásio, como descobri] - e então meu olhar caminha pelo meu dedo médio esquerdo, calejado pela escrita de notas fiscais e faturas e duplicatas que secam pelo menos todo o azul de um dia de caneta. Sinto um seio estranho: parece algo grudando no sutiã; discretamente deslizo meu dedo pelo mamilo - minha mão esquerda retorna com cheiro quente de leite, uma gota, que eu chupo. Penso em fazer um pouquinho de crochê: abro a gaveta e entrevejo, meio aos novelos, uma velha revista do meu curso de propaganda. Fecho de novo a gaveta, desistindo.
Doutor Adolfo não quer que eu use a máquina de escrever pois acredita na força e na verdade da palavra caligrafada. Já eu acredito que teria grande prazer em pousar meus dedos naquele teclado, como pássaros descansam num fio de alta tensão meus dedos queriam fechar um pouco suas asas. Puxa, que interessante essa revelação caída sobre a mesa: um fio de cabelo branco. Deve ser o primeiro. Nesse momento, percebo que o doutor Adolfo, após despedir-se de seus homens suados, entra com muita dificuldade em seu grande carro azul de quatro portas, o mastim Bidu atrás, crivando de baba os banco de preto couro.
Distraidamente, acompanho o mover-se de meu chefe. Liga o carro; porém parece que ele se esqueceu de alguma coisa, e pára de repente. Abre a porta e prepara-se para descer - quando nota que algo o prende. Aguço a visão: uma ponta do cinto de sua calça se engancha com o cinto de segurança. Suando um pouco [como é gordo!], ele se vira - mas foi pior: a calça se enroscou de todo, doutor Adolfo puxa e não consegue se soltar. Tenta se virar para um lado e outro e só o que acontece é se prender cada vez mais, a barriga já aparece por sob a camisa de listas sedosas, um peludo umbigo salta como um palavrão na tarde ensolarada, na tarde em que os homens trabalham e nada percebem dos percalços de seu patrão. Patrão que não oculta um enorme palavrão, eu posso vê-lo mas ele não, escondida que estou atrás do vidro fumê da porta. Na rua deserta, somente um caminhão de gás aponta na esquina, e eu começo a sentir pontadas por todo o abdômen; penso que deve ser o bebê, deve ser o bebê, minha barriga dói - enquanto que a de seu Adolfo, quer dizer, doutor Adolfo, explode em triunfo pelas dobras da camisa. Enquanto o cão late, doutor Adolfo xinga, rexinga e me chama, pois a caminhonete com os vidros já foi embora, ele está sozinho e precisa de ajuda; no entanto, meu corpo, tomado de eletricidade, sentada aqui a esta cadeira como se fosse elétrica, não há ninguém por perto e o doutor Adolfo berra Graça! Graça! Graça, venha já aqui!. Serão chutes na barriga, o Marcos será um bom jogador de futebol?
Meu chefe se contorce e meu corpo envenenado por flechas estremece-se de queimações, lanças de mistérios e horrores frios, fazendo-me retesar os ouvidos para a música que os alto-falantes do caminhão de gás toca para anunciar sua chegada e é, música de Beethoven com 9 letras, muito popular, Pour Élise; Bidu, imaginando que é tudo uma brincadeira, late feliz, pula e lambe as costas do doutor Adolfo, que, preso pela bunda feito uma mulher do século XVII à armação da saia, me joga através do fumê preto um olhar de ódio, eu não sei se deveria ir ajudá-lo ou fazer que não vejo e continuar acompanhando seu circo, só sei estremecer de terror, cair no chão, contrair-me, e então puxar o vestido, baixar a calcinha e escancarar-me, Marcos!, vou parir um monstro!, vou parir-me, vou-me, perdida, perdida, perdida saúdo o mundo com minha substância mais profunda - onde foi parar o bebê? Ah, meu pai, não posso vê-lo com esse sangue todo em cima... Meu corpo, essa desgraça, encontra no galpão um espelho, no meio desse ar cheio de ventos como antes da chuva, mas eu não consigo de forma alguma compreender de que mulher são aqueles olhos azuis que me olham.

por RONALDO BRESSANE

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