terça-feira, 20 de março de 2007

O CRIME - CONTO

Saberás tudo, já que tudo queres saber. Três anos passaram sobre essa negra tragédia. E ainda hoje tenho tudo presente à memória, e ainda hoje te faço esta pergunta, que há três anos dirijo a mim mesmo, todos os dias, sem lhe achar resposta: - Foi um crime o que eu fiz?
Quando Octávio me bateu à porta, às dez horas da noite, eu tinha um livro aberto diante de mim. Não lia. A cólera, que me agitara durante toda a tarde, sucedera uma grande prostração. Parecia-me sem remédio a minha desgraça, depois daquela certeza, daquela terrível certeza...
Amá-la como eu a amava, com o desejo nunca saciado de a possuir, afrontar tudo, cometer o crime de lhe dar cerco durante dois longos anos, persegui-la por toda a parte, ter de viver numa constante dissimulação com o marido, ouvir-me a toda hora elogiado por ele, comer-lhe os jantares todos dias, só para estar junto dela - desanimar afinal, considerá-la honesta, reputá-la o modelo das esposas, passar do amor à veneração, consolar-me com a minha derrota - e, de repente, aquela certeza, aquela terrível certeza de que a minha santa só para mim era santa, e humanizava-se com o outro, na suprema delícia que eu tanto ambicionara!
Eu e Octávio éramos dois inseparáveis. Ligados por um parentesco longínquo, quase com a mesma idade, separamo-nos quando tive de ir ao norte buscar a minha carta de doutor, deixando-o a estudar o seu terceiro ano de medicina.
Nos cinco anos que durou o nosso afastamento, nos correspondemos sempre, cartas de amigos, cheias de confidências e de saudades. Uma dessas cartas trouxe-me, poucos meses antes da minha formatura, a notícia do seu casamento. Casamento pobre: uma menina órfã, que ele encontrara em casa de uma tia, no engenho velho.
A carta, longa e apaixonada, fechava com este trecho: "Ema, que está ao meu lado, vendo-me escrever, manda-te um grande abraço. Já te estima extraordinariamente, mesmo sem conhecer."
E meses depois, numa radiante manhã de domingo, vendo aproximarem-se do navio que me trouxera escaleres e lanchas, cortando a água verde batida pelo sal, - a primeira fisionomia conhecida que lobriguei foi a de Octávio. Dizia-me adeus, muito alegre, mais gordo, num fato de casimira clara. Ao seu lado, toda de branco, acenava-me com o lenço a mulher. Alta e esbelta, de um moreno dourado, grandes olhos profundos, boca pequena e vermelha; sob o chapéu de palha desabado viam-se os cabelos, fartos e negros. Foi ela quem subiu primeiro a escada. Veio a mim, naturalmente, sem embaraço, sem me chamar - doutor, - com uma confiança que me cativou desde logo:
- Bom dia, Jacques!
- Minha senhora...
E caí nos braços de Octávio. Ao almoço, em casa deles, ficamos mais de quatro horas à mesa, matando saudades. Ela tomou parte na conversa, com uma adorável tagarelice de dezoito anos. Examinei-a. Deliciosa de graça e de beleza. Tinha a pele finíssima, a orelha pequenina e delicada, como uma concha preciosa.
Quando olhava para o marido, velavam-lhe os olhos de carinho, meigos, deliciando-se na contemplação dele.
Desse dia, - foi talvez o dia mais feliz da minha vida! - nasceu esta irremediável desgraça. Não fosse ele, e eu não teria cometido aquilo que ainda agora mesmo te pergunto se foi um crime...
Amei-a pelo hábito de vê-la todos os dias, de sentar-me todos os dias ao seu lado, de ouvi-la, embriagado pelo seu aroma, deliciosamente abrasado pelos seus grandes olhos azuis. Tratava-me sem cerimônia, como a um irmão. Contava-me confiadamente, com os olhos muito perto dos meus, - quando Octávio saía a ver algum doente e ficávamos sós, - a sua vida antiga de menina pobre, sem distrações, junto de uma tia rabugenta, na enorme casa triste do Engenho Velho; o seu namoro com Octávio, as dificuldades que apareceram para o casamento, - ela, órfã e pobre, ele, médico novo e sem clínica; e ia por diante, falando muito do marido elogiando-lhe o talento e a bondade, - torturando-me.
Com o outro era muito mais fria do que comigo
Chamava-se Barbosa. Ia lá às vezes jantar, mas comumente só aparecia à noite. Era um moço rico, baixinho, janota, olhos piscos por trás dos vidros grossos de um pincenê de ouro, roupas espalhafatosas, muito conversador. Quando fomos apresentados, - ainda crês em pressentimentos? - não antipatizei com ele. Achei-o vulgar, nem bonito nem feio, nem tolo nem inteligente, - suportável. E nunca me passou pela idéia que amasse Ema: tratava-a com respeito e era tratado com frieza.
Continuei a amá-la. Depois da época do amor contemplativo, veio a outra, a da febre. Achei-me idiota - amando uma mulher, sem lhe dizer. Possui-me da ambição insaciável de gozá-la. Fui perseguido pela sua lembrança, pelo seu olhar, pelo seu cheiro, sem tréguas, de dia e de noite. Quis deixar de vê-la. Octávio arrastava-me para lá, chamando-me de ingrato. Uma noite conversamos os três.
O outro não viera. A campainha retiniu: era um chamado - vinham pedir a Octávio que fosse imediatamente socorrer um doente.
Ficamos sós. Ema principiou a folhear uma revista ilustrada.
Na sala de jantar, silenciosa, ouvia-se apenas o tic-tac do relógio. Não sei o que me deu coragem. Tomei-lhe a mão, beijei-a, ajoelhei-me, disse-lhe tudo, que a amava, que não podia mais com aquela tortura.Ema, pálida de surpresa, levantou-se.
- Oh! Mas enlouqueceu, Jacques? Levante-se!
- Ema!
- Basta! Não me insulte.
E repeliu-me com violência.
Saí corrido de vergonha. Deixei de lá ir oito dias. Quando Octávio me procurava em casa, o criado tinha ordem expressa de lhe dizer que eu saíra. Mas encontrou-me na rua. Que me havia ele feito? Que queria dizer aquilo? Nada! Havia de ir jantar com ele, iria, ainda que à força. Fui. Ela recebeu-me com mais carinho do que nunca. Na meiguice com que me tratou, pareceu-me ver uma certa piedade comovida, pela minha paixão impossível. Não se referiu à cena que eu fizera. E senti desde então o meu amor transformar-se em veneração; desanimei.
Mas, naquela tarde...

Descia a rua do Ouvidor, quando me senti agarrado pelo braço. Era o Barbosa, o outro. Tremia, muito pálido.
- Venha vá.
Levou-me para o fundo de uma confeitaria. Deixou-se cair na cadeira, extenuado: - Que desgraça, doutor! Que desgraça!
Eu olhava-o espantado. Mas o caixeiro aproximava-se. Barbosa pediu conhaque, bebeu três cálices, de pancada, e com a cabeça entre as mãos, começou a falar rapidamente, confundindo palavras, precipitando frases, de um jato. Fiquei sem movimento e sem voz, fulminado. Ele falava, contava tudo. Havia ano e meio que era amante de Ema. Eu com certeza nada tinha suspeitado! Pudera! Tomavam tantas precauções... Nunca se encontravam em casa do marido. Davam-se entrevistas durante o dia, dias vezes por semana, em uma casa de uma tia dela, no Cosme Velho. Ano e meio... De repente, que desgraça! Que desgraça!... Fora Ema que lhe mandara dizer, em carta.
- Veja!
Estendia-me um bilhete amarrotado. Era uma letra miúda, trêmula, lançada a pressa no papel: "Estamos perdidos. Ele sabe tudo. Mandaram-lhe uma carta anônima. Mata-me, com certeza... "
Não sei como não estrangulei aquele miserável! Continuava a falar, perguntava-me o que devia fazer. Mas não o ouvi. Saí cambaleando, com uma nuvem de sangue diante dos olhos, andei ruas e ruas, cerrando o punho, cravando as unhas na carne, cego. Vaguei toda a tarde sem destino. Que torpeza! Com aquele insignificante, com aquele idiota!
Quando entrei em casa, já noite, andava-me a cabeça à roda. Mas seria possível? Como não tinha eu surpreendido nenhum sinal entre os dois, um olhar, um tremor de voz? Como não tinha eu visto nada, absolutamente nada?
Não pensei em Octávio.
Naquela grande desgraça, não me lembrei dele, tão meu amigo, tão nobre rapaz, tão digno, traído daquele modo, fulminado por aquela vergonha. Quis ainda esquecer-me de mim, procurá-lo, lastimá-lo, consolá-lo. Mas, a meu pesar, lembrava-me apenas de mim, que durante dois anos seguidos a tinha amado em silêncio, respeitando-o.Que papel, que papel tinha eu representado! Fingido tudo aquilo, fingido o seu modo recatado de esposa digna, fingido o seu carinho pelo marido, fingida a indignação daquela noite, na sala de jantar... Porque não a agarrei violentamente, porque não a amei ali mesmo, quando ela por certo não esperava senão pela primeira violência para ceder, como adúltera que era? Como pude ser tão inepto, que tomara por surpresa de honestidade o que era apenas requinte de faceirice? E compreendi até que ponto a minha amizade fora sufocada pelo meu amor: o que eu sentia agora por Octávio não era comiseração - era desprezo.
O traído era eu, era eu, que a amava: parecia-me que ele era o único responsável por aquilo, como se estivesse o dever de vigiar a mulher, só para que não fosse traído.
Enfim, estava feito. Ele que arranjasse... Eu que podia fazer?
E, num grande consolo, alquebrado pela cólera que me sacudira todo, olhava, às dez da noite, para um livro que não lia, tristemente. Foi quando ouvi bater à porta. Quem poderia ser? Barbosa, talvez... Era melhor não abrir. Mas, reconheci a voz de Octávio.
- Abre, Jacques!
Apressei-me. Entrou, muito calmo, dizendo-se cansado. Fiquei sem saber o que havia de lhe dizer. Espantava-me aquela tranqüilidade.
Octávio pegou no livro:
- Que estavas lendo?
E, sem esperar resposta e sem olhar para mim:
- Porque não apareceste ontem e hoje?
- Muito trabalho...
Ele levantou-se de um salto, atirou o livro ao chão e, segurando-me pelos ombros, com seus olhos nos meus, disse, entre os dentes, num tom surdo:
- Minha mulher engana-me. Tu sabes disso...
- Como? Estás doido, Octávio?
- Sabes?
- Não sei nada, filho. É impossível! Quem te meteu isso na cabeça?
Ele sentou-se, calmo outra vez.
- Ouve. Não estou doido. Preveniu-me uma carta, com indicação do lugar, da hora, todos os detalhes. Fui e vi-a entrar. Engana-me. Engana-me com o Barbosa, com aquele miserável. Tu sabias?
- Não sabia, acredite!
- Que infâmia!
Deu alguns passos pelo quarto, agitado, tomou o chapéu.
- Vem daí. Vamos andar. Isto aqui sufoca.
Saímos. Àquela hora, quase deserta a praia de Botafogo. Fomos seguindo calados o paredão do cais, pela noite serena, cheia das vozes do mar, cheia de palpitação das estrelas. A praia estendia-se, recurvando a longa reticência luminosa dos lampiões. De quando em quando, um carro passava, descoberto, a toda disparada, transbordante de risada e de cantigas. Octávio, de cabeça baixa, vergastava o ar com a bengala.
Então tive uma idéia covarde. Porque não aproveitar aquele ensejo de vingança? Porque negar que sabia? Porque não aproveitar o marido ciumento contra o rival odiado?
Ele parou:
- Tu sabias, Jacques?
Reagi contra a tentação.
- Não sabia. E mesmo não creio. Que provas há?
- Digo-te que a vi entrar.
- Mas, sabes lá se é a casa de alguma amiga?
- Jacques, fala com franqueza! Estás mentindo. Sabias.
Não! Eu não podia cometer aquele crime, seria uma abjeção...
Mas ele insistia:
- Sabias, Jacques?
Não pude mais resistir:
- Pois bem! Sabia.
E disse o que sabia e o que não sabia, inventei episódios, criei minúcias, reduzi Ema às proporções de uma coquete vulgar, a pus nua, mostrei-a entregando-se ao amante, numa casa alugada, alarguei cruelmente a ferida que o desgraçado tinha no coração, envenenei-a, açulei todo o seu ódio de marido enganado contra o Barbosa, aumentando-lhe e agravando-lhe a culpa, com uma perversidade sem nome.
- Que infâmia! Que infâmia!
Esteve um momento calado, olhando o mar que estourava contra as pedras, espumante. E, de repente:
- Basta! Não falemos mais nisto. Vamos para casa. Moras perto de mim, deixar-me-ás à porta. Falemos de outra coisa.
Mas, não falamos de coisas nenhuma. Fomos andando em silêncio, de braço dado, até que, à porta da casa dele, voltei ao assunto, já arrependido do que fizera.
- E, agora, que tencionas fazer?
- A ele? Nada. Ela se ofereceu, ele aceitou-a. Demais, não era meu amigo. Sim! Eu nunca o chamei amigo...
- E a ela?
- Nada também. Corro-a de casa, a pontapés, como uma ladra. Olha! Vou ver se durmo, tenho a cabeça a arder. Vem cá, de manhã. Leva-a para a casa da tia. Livro-me dela, vendo tudo, vou para longe daqui, para que ninguém saiba desta vergonha. Boa noite...
E abriu a porta. Quis detê-lo. Ele impacientou-se:
- É isto, filho! Vem amanhã, cedo. Não posso mais falar nesta imundice. Boa noite...
Entrou. Ouvi o rumor da chave, fechando a porta, ouvi passos pela escada acima.
E a casa, na rua deserta, ficou silenciosa, escura, indiferente, como nas outras noites, quando eu saía dali, tarde, despedindo-me no topo da escada de Ema e Octávio, muito chegados um ao outro, muito felizes.
Tive remorsos. Que iria fazer? Se matasse o Barbosa, não seria eu o verdadeiro autor desse crime?
Mas aquele dia de comoções violentas acabara por aniquilar-me. O que eu agora queria era esquecer-me de tudo, fugir de tudo, dormir ou morrer, contanto que não pensasse mais naquilo.
Atirei-me à cama, sem consciência.
Dia alto, acordei, sobressaltado. Alguém me abalava a porta, violentamente, gritando.
Fui abrir. E Barbosa precipitou-se no quarto com a fisionomia torcida de terror, alucinado. Abraçou-se a mim, chorando. Tonto ainda de sono, fiquei sem compreender coisa alguma. Ele chorava, sem poder falar, sufocado pelo choro. Afinal, sempre pude entender: Octávio assassinara a mulher.
Contou-me os pormenores. De manhã, não se podendo conter, fora rondar-lhe a casa. Havia muita gente à porta. Disseram-lhe que o Dr. Octávio matara a mulher a tiros de revolver, que já fora preso; que a polícia tomara conta da casa.
Vesti-me não sei como, corri para lá. Dois soldados à porta não me queriam deixar entrar: empurrei-os, subi a escada a quatro e quatro. Na sala, guardado pela polícia, o corpo estava no chão, estendido sobre o tapete. Nenhuma pessoa da família: Octávio preso e a tia, naturalmente, ainda ignorando tudo.
Ema estava vestida de branco, como naquela radiante manhã de domingo, quando a vi pela primeira vez, a bordo. Colavam-se à testa os cabelos empastados. Aberto no peito, o vestido deixava sair um seio moreno, rijo e curvo como um bloco de ouro, todo listrado de sangue.
Sob as pálpebras arregaçadas, os seus olhos negros, os seus grandes olhos profundos, fixavam-se em mim.
O outro vivia. Ela estava morta. Fora eu quem a matara?
Que importava... Ninguém mais beijaria aquele seio, beijado por dois homens, nunca beijado por mim...
Foi um crime o que eu fiz?

por olavo bilac

18 comentários:

thiago prado disse...

muito bom esse conto.eu recomendo

Anônimo disse...

chato

Anônimo disse...

mto grande

Anônimo disse...

Não gostei, muito grande, chato e cansativo de ler

Anônimo disse...

esse texto é uma merda, meu deus do céu, esse texto foi o pior que eu já li, não recomendo perder o tempo lendo esta merda

Anônimo disse...

História cansativa, deu ate sono

Anônimo disse...

talarico desonesto!!

Anônimo disse...

texto incrível, me fixei nele como uma flecha em um alvo, um átomo polarizado de água

Anônimo disse...

Anônimo disse...

Otávio chifrudooo

Anônimo disse...

Por que o site não tem o padrão de segurança da apple? Diz que o site não é devidamente seguro

Anônimo disse...

rsrsrs, não de spoilers senhor Anônimo

Anônimo disse...

eles se juntaram como uma ligação iônica entre 2 átomos e 3 átomos de oxigênio, através de suas nuvens de eletrônicos, uma beldade indistinguível

Anônimo disse...

Garantido meu ovo

Anônimo disse...

cheguei em casa e me deparara com meu filho em meu celular fixado neste texto! Uma obra prima!!

Anônimo disse...

2 átomos de alumínio*
nuvem de elétrons*

Anônimo disse...

até meu marido está viciado nesse texto!! Preferiu ler esse texto que ter nossa noite de núpcias!

Anônimo disse...

Que triste