terça-feira, 20 de março de 2007

TEMPO ESQUECIDO - CONTO

Passeando entre as jabuticabeiras da fazenda onde vivera a infância e a pré-adolescência, Priscila sentia suas lágrimas correrem pelo rosto. Chorava de saudade. Pisando folhas, descalça, corria as mãos pelos troncos das árvores nas quais brincara quase diariamente. Sentia-se novamente uma criança e seu vestido branco lembrava outros, rasgados ou manchados nas suas brincadeiras mais próprias para meninos. Fora muito feliz ali, mas só agora tomava consciência disso.
-"Menina, você já é uma moça! Toma jeito! Desce dessa árvore!"
Lembrava-se de Danana, que, como se fosse sua mãe e não aia, cuidara dela desde o seu nascimento. Ao receber a notícia da sua morte, há anos atrás, envolvida em seus compromissos profissionais, relegou o fato para segundo plano. Surpreendia-se agora com a intensidade da amargura que sentia por nunca haver lhe transmitido a sua gratidão.
Quem a observasse com seu corpo ainda esbelto e a agilidade dos seus movimentos, apesar dos cabelos brancos que começavam lhe clarear as têmporas, dificilmente iria supor que Priscila já tivesse passado dos cinqüenta anos.
Chamada pelo tio Euzébio, que a nomeara sua herdeira universal, havia chegado na véspera e mal reconheceu a fazenda onde vivera e que, na sua lembrança, por todos esses anos, a comparava com a de "...E o vento levou". Era a fazenda São Joaquim em decadência. Alquebrado, doente, seu tio ocupava apenas uma parte do casarão, medianamente conservado, e cuidava da administração dela, que lhe coubera na distribuição do inventário de seus pais. Os campos arrendados a plantadores de cana não mais apresentavam os matizes de verde dos bosques, dos cafezais e das florestas, nem os pássaros ou os odores, superados pela mesmice dos canaviais e pelo cheiro das queimadas e do xarope de cana.
A colônia, antes cheia de vida com uma carreira de espatódeas colorindo a alameda central, estava em ruínas. Apenas nos períodos de safra chegam os bóias-frias nos caminhões, pela manhã, e ficam até o fim da tarde fazendo a colheita. Gado não havia mais e o que se comia era comprado na cidade.
Fugindo dessa realidade, Priscila se recordava das cantorias que vinham da colônia e das festas das noites de sábado quando as brincadeiras iam pela noite a dentro. Renascia em sua memória a visão do avô, austero e hilário, a repreender e punir os que perturbavam o sono de seus familiares ou hóspedes. Saudosa, lembrou-se como seu tio Euzébio era um homem vigoroso, bonito e alegre. Ele se misturava com os colonos e os peões para participar de corridas de cavalo e rodeios, quando, na maioria das vezes, saía vencedor, sempre muito aplaudido.
Ao reencontrar na véspera o tio, depois de tantos anos sem sequer se falarem, ela se retraíra diante da sua acolhida efusivamente calorosa. Agora, revolvido o seu passado com as lembranças da época, lembrou-se de quando corria com ele pelos jardins, pescavam no lago, iam de charrete à cidade tomar sorvete e de quando à noite lia histórias para ela. Aquele tempo esquecido voltava à sua mente, com detalhes minuciosos. Renasceu até seus sentimentos mais íntimos. Convivera com o tio muito mais do que com o próprio pai e, intrigada, recordou-se até da avó recriminando o excesso de zelo e proteção que o tio Euzébio tinha pela sobrinha. Imediatamente recordou-se como sua avó, a instável Dona Chiquinha, lamentava o desinteresse do filho Euzébio pela vida social da cidade grande, ao contrário de Eugênio, o pai de Priscila, que pouco aparecia na fazenda e freqüentava a elite da sociedade do Rio de Janeiro. Ela estava sempre estimulando Euzébio a casar-se com alguma das filhas de suas amigas.
No alto, presa num tronco de uma frondosa árvore, Priscila descobriu os restos da corda que prendia o seu velho balanço e identificou, agoniada por não poder dividir com alguém as suas descobertas, o resto da velha gangorra na qual brincava com as crianças da colônia.
Naquele recanto sombreado acirrou suas recordações e lembrou-se quando recebeu ali a notícia que iria estudar em São Paulo, num colégio de freiras. Por alguns dias havia chorado, sentindo-se relegada pelo tio que nada fez para mantê-la ali na fazenda. Sua mãe veio buscá-la antes do Natal e no início do ano letivo foi recebida pelas freiras do internato. Atraída e excitada pelas novidades que a cidade grande lhe proporcionava e pelas novas amizades, rapidamente se adaptou à nova vida e nunca mais pensou na fazenda, nas crianças da colônia ou no tio Euzébio.
Nem mesmo a tragédia da morte de seus pais, num acidente de trem na Argentina, chegou a afetá-la com profundidade. Priscila, por si mesma, reconheceu que intimamente os acusara de tê-la afastado de suas vidas.
Com a sua formação conduzida a partir de então por familiares da mãe, aos quais mal conhecia, passara a estudar numa escola suíça, onde sem amizades profundas, dedicara-se aos estudos. Formada teve uma vida de sucesso como diplomata e apenas se lamentava que a sua atividade frustrara sua grande expectativa, o amor.
Jogada sobre a relva, observando o sol apenas cintilante através da densa camada de folhas e galhos de uma velha mangueira, pensou nas amizades da infância e as lágrimas vieram aos seus olhos com as lembranças das brincadeiras de roda, das músicas e dos teatrinhos que montava, com improvisadas fantasias. E novamente lhe vinha à mente o tio Euzébio, inventando brincadeiras. Esforçava-se para se recordar de momentos felizes com seus pais mas seus pensamentos eram confundidos pelas clássicas fotografias das festas de aniversários, ambos muito bem vestidos, com um ar de quem precisasse sair logo em seguida. Sempre sentira um incompreensível vácuo no relacionamento com eles, algo que sua mente infantil forçara o esquecimento. Mesmo adulta, lhe parecia que algo de muito ruim estava sendo escondido, e evitava, ora consciente ora inconscientemente, aprofundar-se na questão.
O tio Euzébio apareceu com sua bengala na porta do antigo jardim de inverno acenando para ela. Com sua voz fraca e rouca ele a informou que advogado e o escrivão só poderiam vir dali a dois dias. Ela até achou bom, pois estava restaurando o seu passado, longe do enorme apartamento que ocupava sozinha em São Paulo.
No dia seguinte ela acordou cedo e como o lavabo, apêndice do seu quarto, não tinha chuveiro, ela vestiu o roupão de banho e caminhou ao banheiro que lhe havia sido destinado, no fim do corredor. Seguiu observando as portas dos antigos cômodos, fechadas precariamente com tábuas rústicas, que permitiam ver que alguns deles estavam parcialmente destelhados, com as janelas praticamente destruídas. O próprio corredor, nesse trecho, não era protegido o suficiente para evitar que o vento mosqueasse o piso de folhas.
Tentou identificar os quartos, tarefa difícil pois haviam passado por sucessivas reformas. Diante de uma porta ainda em bom estado, almofada com pátina nas molduras, parou convicta de que se tratava do quarto da sua avó, Dona Chiquinha. A falta de luz sob o vão da porta indicava que deveria estar, pelo menos parcialmente, conservado. Ela forçou a entrada, a dobradiça rangeu e cedeu. Estava escuro e com dificuldade abriu uma das janelas. A brisa leve que entrou foi o suficiente para levantar a poeira que destacou as faixas de luz que cruzaram o ambiente.
-"Meu Deus! Tudo igualzinho!" - exclamou.
Tomada de grande emoção caminhou, como fizera diariamente há quarenta anos, até a cabeceira da cama, coberta pela mesma colcha rendada com babado de cetim que chegava até o chão.
-"Que fazes aqui, Priscila? Teu avô não vai gostar! Volte a dormir, minha filha!" - parecia ouvir sua avó.
Com gestos mecânicos, nervosa, mexeu nas gavetas da penteadeira, dos armários, dos criados-mudos. Estava tudo lá, malcheiroso, pintado pela poeira, em sépia, desde o piso de madeira até o forro emoldurado. O terço pendurado no espaldar da cama, as escovas revestidas de lâminas de prata, a turquesa com suas almofadas desenhadas em fio de seda, estavam como na última vez que lá estivera. Num baú ao pé da cama, Priscila encontrou sob os cobertores de lã, com a emoção de um arqueólogo diante de uma ossada de milhares de anos, cartas, recortes e fotografias. Então envolveu-se com a descoberta e sentando-se no chão, pernas cruzadas, viajou no tempo.
Sem nada planejar descobria verdades e, como num quebra-cabeças, as cartas, os recortes de jornais, as fotografias, pequenas lembranças como bilhetes de entrada do Teatro Municipal e do Cassino da Urca, montavam uma história e expunham os mistérios da sua infância. Encaixando as peças com as cartas recebidas pela avó, do marido em campanhas políticas, e de Eugênio, em viagens pelo mundo, descobriu verdades nunca imaginadas por ela. Ficou sabendo que Maria Pia, sua mãe, havia retornado sozinha da viagem de núpcias, após descobrir o envolvimento do marido com uma bailarina russa, em Paris. Cartas de Eugênio para Dona Chiquinha, exibindo seu gênio irascível, exigiam que Maria Pia se afastasse do convívio com a elite social do Rio e de São Paulo e por isso queria que ela permanecesse na fazenda, até que as coisas se resolvessem. Recriminada na própria família por ter abandonado o marido, fossem quais fossem as razões, a mãe de Priscila acabou por aceitar o convite da sogra e veio morar com ela na fazenda.
Alguns meses depois Maria Pia anunciou à sogra que estava grávida, era Priscila que chegava a este mundo. Sabedor disso, Eugênio viera buscar a mulher, levando-a então à sua casa no Rio de Janeiro, onde Maria Pia passou a ter a companhia da própria mãe. Antes de completar dois anos Priscila foi morar com a avó na fazenda, sob a alegação de que Eugênio estava em campanha e que precisava de Maria Pia ao seu lado. Esta passara a ver a filha apenas em curtos intervalos, com a complacência do pai.
Priscila nunca conseguira se lembrar do seu relacionamento com seus pais nos anos que se seguiram, mas numa carta, demonstrando ter sido a mais manuseada, descobriu o mistério que pairava na família. Carregada de lamento e ódio, Eugênio informava à Dona Chiquinha que a filha não era dele, mas sim de Euzébio, seu irmão, com quem Maria Pia convivera alguns meses na fazenda. Descobrira a verdade ao ser diagnosticado estéril num exame médico e portanto impossibilitado de ter filhos.
Como a digerir aquela informação, Priscila mordeu os lábios e fechou os olhos. Lágrimas correram pelo rosto e ela virou a página, Eugênio garantia à mãe que continuaria casado com Maria Pia, mantendo a responsabilidade da paternidade, mas cobrava de Euzébio o juramento de silêncio eterno. Percebendo que apenas as aparências importavam para ele, Priscila ouviu o próprio gemido extravasado de um sentimento de indignação e constrangimento. Pôde avaliar pelo que passou sua mãe, sacrificada, estigmatizada, submetida à infâmia de uma velada escravatura, por amor à filha.
Alheia a tudo à sua volta, Priscila revirou outros papéis, indiferente. Depois levantou-se e saiu ao ar livre, com a brisa da manhã a movimentar as folhagens, seu cabelos e sua roupa. Ela não precisava procurar mais nada, lhe satisfazia o prazer de saber sempre ter tido o amor da sua mãe e do seu pai, o "tio" Euzébio.

por cecília guerrero

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